Vivemos a serviço de quem? De Deus ou de “César”? – 29º Domingo do Tempo Comum – 22.10.2023
“Devolvei a César o que é de César, e daí a Deus é que é de Deus” (Mt 22,21)
No evangelho de hoje continua o confronto entre Jesus e as autoridades religiosas. Os sacerdotes, anciãos e escribas tinham sido criticados e denunciados por Jesus na parábola da vinha. Agora, eles pedem aos fariseus e herodianos para armar uma cilada contra Jesus – “é lícito ou não pagar imposto a César”? -, a fim de poder apanhá-lo e condená-lo.
O tema era muito polêmico em tempos de Jesus. Vai mais além do simples pagar imposto ou não. Revela uma concepção de vida que tem a ver com ser livres ou escravos. São o povo de Israel, povo eleito por Deus: como, então vão se submeter a César?
Jesus percebe a hipocrisia. Na sua resposta, ele não perde tempo em discussões inúteis, e vai direto ao centro da questão. Ele não cai na armadilha (pagar ou não pagar), mas propõe um caminho diferente: devolver a moeda a César, dar o que é seu, sair de seu império econômico, para assim ocupar-se verdadeiramente das coisas de Deus.
Este é um tema antigo, mas também atualíssimo, que nos situa diante do ideal de uma humanidade fraterna em gratuidade (sinal de Deus) e a realidade de uma política e economia sustentadas por tributos que, em princípio, poderiam e deveriam estar a serviço de todos, mas que na realidade tendem a ser controlados por alguns.
Diante da pergunta sobre o pagamento de impostos, Jesus dá à sua resposta uma profundidade que seus adversários não esperavam e que não lhe perguntaram: “e dai a Deus o que é de Deus”.
Que é de Deus? Para os judeus, como para nós, tudo é de Deus. Se a moeda tem a imagem de César, toda pessoa humana é, em si mesma, imagem de Deus; todos somos filhas e filhos seus. E, a partir dessa realidade, tudo muda em nossa vida. Portanto, não se trata de estar a serviço de dois senhores, de dividir os afetos entre eles, de estabelecer proporções e equilíbrios entre Deus e César. Jesus não coloca Deus e “César” no mesmo plano; são tantos “césares” a quem pagamos tributo e de quem nos fazemos súditos que até esquecemos que “Deus é o único Senhor”. Deus não pede impostos, nem se impõe sobre nós, é pura gratuidade. Sua presença é sempre providente e cuidadosa e que desperta em nós uma profunda gratidão: devolver a Ele todos os bens e dons que recebemos.
A única coisa que Deus deseja para todos é esta: uma vida mais humana desde agora e uma vida que alcance sua plenitude na vida eterna. Por isso, nunca se pode dar a nenhum “César” o que é de Deus: a vida e a dignidade de seus filhos e filhas.
Só ali onde é devolvida a César a moeda é que se pode dar a Deus o que é de Deus, ou seja, tudo o que somos e temos, inaugurando um tipo de vida diferente, em gratuidade, isto é, sem “capital” de império, sem a violência política e econômica que o tributo simboliza, sem o poder que desumaniza.
A resposta de Jesus aos fariseus e herodianos revela a existência de dois dinamismos, duas forças, ou duas presenças em nosso interior. Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções; estas tendências encontram-se instaladas no cento mesmo do coração.
Nele se encontram, com efeito, as raízes dessa dinâmica que, por um lado, se deixa conduzir pelo “cézar da vida” fechando a pessoa no seu próprio ego e fazendo-se o centro; e, por outro, quem se deixa conduzir pela presença do Espírito, entra no fluxo da expansão de vida em direção à alteridade, ao serviço, à partilha. De um lado, o impulso para ir além de si mesmo; de outro, o movimento de retração e fechamento em si.
É preciso despertar a consciência da presença destas duas forças opostas (uma de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros, à criação, a Deus; e outra de fechamento, resistência e medo).
Aqui não se trata de alimentar um combate entre “Deus” e César”, entre o bem e o mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas “tentações” (tendências, impulsos, inclinações… presentes em todos nós).
O seguimento de Jesus não é luta interna que desgasta, levando ao sentimento de impotência e desânimo. O combate dualístico (entre o bem e o mal) desemboca no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo… onde o centro sou “eu”.
A questão de fundo é saber: quem alimentamos em nossa vida? “Deus” ou “César”? quem ocupa o centro da nossa vida? estamos a serviço de quem? onde estão nossos afetos: ordenados para Deus ou para “César”? Aqui nossa liberdade é ativada para deixar-nos conduzir pelo Espírito, assim como as águas do riacho se deixam conduzir em direção ao Grande Oceano. O centro é o Espírito.
Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre “Deus” e “César”, entre o “Deus de Amor” e o “César do poder”, entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Ninguém pode servir a dois senhores, pois não se pode investir afetivamente em duas direções.
Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar o “César”, isto é, amar o poder, a acumulação de riquezas que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração…
A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
O apego aos “césares” dos bens, das riquezas, do poder… apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. Como todo ídolo, o “César” provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas.
Daí surgem as racionalizações com a desculpa de servir a Deus; no fundo, manipulamos Deus para santificar nossos afetos desordenados. “Eu quero um Deus que queira o que eu quero”.
A proposta dos Evangelhos, nesse sentido, é clara e contundente.
Eleger a partilha e o despojamento é a base e condição para poder seguir Jesus no trabalho do Reino.
A escolha de uma vida despojada expressa a liberdade para colocar-se a serviço do Reino.
A afeição aos bens, ao poder, à vaidade…, pelo contrário, acarreta o enorme risco de se ficar cego e surdo para atender ao chamado de Jesus.
No centro da mensagem do evangelho encontramos a revelação de Deus como Pai e a proclamação da igualdade e da fraternidade de todos os homens e mulheres. A criação de uma comunidade onde o compartilhar substitua a acumulação, e que se apresente como alternativa àquilo que o mundo propõe, configura-se como uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
A quantos “césares” pagamos tributos? Em chave de interioridade, alimentamos muitos “césares”, de quem nos tornamos súditos e dependentes, e que se impõem a nós com seus “impostos”. São os nossos apegos, instinto de posse, busca de poder e prestígio, posição social, títulos… que exigem alto investimento afetivo. Carregamos “nocivos hospedeiros” que um dia entraram em nossa vida, foram crescendo lentamente, alimentando-se de nós mesmos e acabam nos paralisando como em teias de aranha, destruindo-nos por dentro. É preciso reordenar todos os dinamismos e potencialidades humanas em direção a um horizonte de sentido: o Reino. O discípulo pela metade não pode ser discípulo. Deus é Santo, mas em sua santidade pede sinceridade na vontade e verdade no coração. Não servem as entregas pela metade. Deus não pode se contentar com “amor a prestações”, com retalhos de vida.
Texto bíblico: Mt 22,15-21
Na oração: Você se sente pessoa livre, que busca e escuta a verdade, Aquele que é a verdade?
– Você está a serviço da verdade, ou da mentira, das “fake-news”? Seus afetos estão ordenados no serviço do “Deus do Reino” ou “césar do poder”?
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ