Uma subida desconcertante que nos transfigura – 2° Domingo da Quaresma – 25/02/2024
“Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha” (Mc 9,2)
Os bons montanhistas sabem que, para chegar ao cume, é necessário muito esforço e sacrifício. Subir vai contra à nossa natureza humana; a gravidade nos arrasta para a comodidade de uma poltrona.
A subida requer programar o caminho, buscar uma rota acessível, usar calçado e uma roupa adequada, exige uma preparação física, levar só o essencial; é imprescindível ter bons companheiros de aventura para reativar o ânimo, ajudar-se mutuamente diante dos perigos dos precipícios, dos escorregões, do mau tempo.
Mas, quando chegam no alto, não sentem mais as bolhas, os cansaços e os arranhões; o ar é como um frio punhal que enche seus pulmões, a luz é sua vestimenta, as nuvens são sua almofada, o céu é tão azul como nunca sonharam, e todos os problemas do seu pequeno mundo que ficaram para trás se tornam insignificantes como formigas. Nas alturas sentem-se mais eles mesmos, como se sua alma pudesse voar.
E assim também aconteceu com Jesus e seus amigos Pedro, Tiago e João: Ele subiu o monte Tabor, para que, a partir do mais alto pudesse revelar sua verdadeira identidade, cheia de Luz e de Paz. O carpinteiro se revela como Pantocrator, custodiado por Moisés e Elias.
A compreensão do relato de Marcos nos revela que a realidade “transfigurada” de Jesus é uma realidade compartilhada: todos somos seres transfigurados.
Transfiguração: tempo de interioridade, desejo de contemplar-nos a partir de nosso “eu profundo”, “lugar” dos nossos recursos mais nobres, dos dinamismos de vida, da criatividade, da intuição e dos sonhos, das forças que nos impulsionam a viver em contínuas buscas…
Todo ser humano possui dentro de si uma profundidade que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside o que é mais nobre em cada pessoa, que só uma experiência de transfiguração é capaz de desvelar.
É aqui, onde a pessoa encontra a sua identidade pessoal; trata-se do coração, da dimensão mais verdadeira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
Uma das características do mundo pós-moderno é a transformação, a evolução, a mudança. O Evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos revela que é possível “transfigurar-nos” se formos capazes de descobrir a Presença transformadora de Jesus em nós no caminho que nos cabe viver, na subida ao monte (Sinai, Hermón ou Tabor), símbolo do divino. É a subida da consciência, do conhecimento interior, dos sentimentos elevados, dos desejos mais nobres… que brotam do mais profundo de nós mesmos.
Diz o texto de Marcos que Pedro, Tiago e João acompanharam Jesus. Que foi que viram? Algo tão natural como cair na conta, em um momento concreto da existência, de uma faísca, uma sensação que vai mais além dos sinais superficiais: a percepção da presença do divino em si mesmos e a fonte da qual experimentar um antes e um depois. Poderíamos chamar isso de experiência fundante, prazerosa, plenificaste, quase nunca espetacular, mas que deixa uma profunda ressonância interior. Nessa situação, pode surgir uma expressão tão humana como a de Pedro: “é bom ficarmos aqui”.
Aqui, a pessoa experimenta algo essencial em sua vida: sente-se como filho(a) amado(a). Já paramos para pensar o que realmente significa ser “filho/a amado/a”?
Deus conhece nossas necessidades, nossos desejos, nos oferece a oportunidade de renascer, de transfigurar-nos. Em todo momento nos comunica sua Vida, a única. Somos portadores do divino. No mais íntimo de nosso ser ouvimos sua voz: “Escutai o que Ele diz!”. Uma voz que mobiliza o há de melhor em nós. É preciso distingui-la daquelas vozes que nos atordoam, confundem ou violentam, das palavras falsas, vazias, carregadas de promessas e mentiras que, lamentavelmente, são pronunciadas sem pudor.
Somos vida transfigurada na qual todos estamos implicados.
Diante de um contexto mundial tão obscuro faz-se urgente despertar em nós os atributos mais humanos e divinos para sermos pessoas de luz, pessoas que, através dos estilos de vida sintonizados com a natureza, brilham com luz própria. Somos, na essência, “seres translúcidos”, que deixam passar a Luz divina presente em nós. A Luz existe desde o princípio e a nós cabe sermos testemunhas dessa Luz e, portanto, seres que deveríamos transluzir essa Luz eterna em nosso agir cotidiano.
Seres translúcidos existiram e existem sempre; mesmo no escondimento, são tantos e tantas que deixaram e deixam passar a Luz em suas vidas e que deixam marcas impagáveis em nós.
De fato, “ser translúcido” é nossa essência pois fomos criados por Amor, que é Luz, embora tantas vezes podemos ficar opacos quando impera em nosso interior o egocentrismo, o ódio, a intolerância, o medo, que nos atormenta e nos bloqueia.
Seguramente que não podemos ser translúcidos sempre e em todo momento; assim como o sol, um astro que brilha sempre, mas só chega a nós algumas horas do dia.
Mas, podemos ser translúcidos a maior parte do tempo, levar a Luz que brilha desde toda a eternidade e fazê-la brilhar na obscuridade que nos rodeia. Sejamos translúcidos, mostremos a Luz!
A Transfiguração não é algo externo, uma mudança de disfarces como no carnaval, mas é um abrir-se à realidade cotidiana e cair na conta de que a vida e a história estão cheias de sentido, de vida.
A realidade é uma linguagem que nos fala de algo mais que a mera materialidade.
Há pessoas que, no ambiente em que se encontram, transfiguram a vida e os problemas, criando um clima de paz e serenidade na vida familiar, comunitária, eclesial, laboral, etc…
Há pessoas que transfiguram a guerra em paz, o pecado em graça, o ódio em respeito e amor, a enfermidade em fonte de reflexão e aceitação da própria finitude, o desespero em esperança…
Isso acontece também no campo da arte, da estética: no fundo, é uma transfiguração do ferro, da madeira, da pedra, da linguagem, dos sons e nos transportam a um “mais além”.
Um entardecer, um encontro, uma oração, podem transfigurar nosso ser, nossa existência para a verdade, a bondade ou a beleza.
Quando participamos de uma celebração de exéquias, evocando a morte dos seres queridos, somos transportados, transfigurados e isso nos leva a outras realidades de esperança, casa do Pai etc.
O mundo de hoje pede pessoas capazes de transformar, de transfigurar, de proclamar uma Palavra de verdade, de bondade, de estética, de ideais, valores, caminhos…
Viver é transfigurar a existência, transcendê-la. A experiência, o encontro com Cristo transforma, transfigura nossa vida e a enche de paz, de luz, de sentido.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração: Transfigura tua existência, eis a questão!
Desapega-te de teus problemas, suba, mesmo que te custe. Busque companheiros que te ajudem a situar-te a partir de uma perspectiva de pássaro, onde o ar seja mais puro e a Luz mais clara. Encontra teu Tabor,
onde possas sentir a presença do Amor mais puro, onde possas descansar, onde possas descobrir tua verdadeira identidade e o que é essencial para tua vida. Desapega-te do celular, esquece tua agenda, silencia tantos toques. Abandona tua pesada bagagem de preocupações e coisas que não precisas. É teu Tabor.
De tempos em tempos é preciso subir teu Tabor, mesmo que custe desprender-te do passado e do pesado.
– Você é uma pessoa que transfigura um nascimento na família, um sofrimento, que transforma o trabalho, a convivência? Está aberto(a) à transfiguração da grande noite da vida?
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ