Um Rei em “más companhias” (20/11/2022)
Um Rei em “más companhias”
“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado” (Lc 23,42)
Rei, não há outra palavra menos apropriada para Jesus.
Jesus, rei atípico. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos: explorando, dominando…
Jesus, no entanto, reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo. Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres e excluídos, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia.
O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias dominadoras, triunfalistas e conservadoras.
Esse é a maior contradição da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem dinheiro e que não pode defender-se, que não tem exército… Um rei sem trono, sem palácio, sem pompas, sem poder.
Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a Cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Até os seus o abandonaram. Pobre rei!
Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder, sobretudo do poder religioso, o mais nefasto. E não só condenou aqueles que dominam como também condenou, com a mesma veemência, aqueles que se deixam dominar.
Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer seres humanos ungidos pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.
Jesus quer que todos sejamos “reis” ou “rainhas”, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência.
Há uma nobreza presente em nosso interior e que é ativada no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário…
Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI, há quase 100 anos, e nem mesmo aquele sentido que é dado pela maioria dos cristãos. Devemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus rei do universo”.
Jesus será “Reino do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos forem testemunhas da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida… Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela. E são tantos os crucificados no nosso contexto social e religioso!
O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Fixemos nosso olhar nos persona-gens que assistem ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não é a multidão que habitualmente O segue, mas pessoas que assistem com curiosidade zombadora.
Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tem um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgavam-se em posse da verdade.
Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se.
O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.
Um dos ladrões o insultava: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”.
Ninguém parece ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do Pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história.
Mas, a grande surpresa está reservada para o final da cena: aquele homem impotente, que agonizava na Cruz, promete o paraíso a outro condenado à morte e que se dirigira a Ele assim: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado”. É o único personagem em todo o Evangelho que se dirige a Jesus chamando-o simplesmente por seu nome, sem acrescentar nenhum outro título como Senhor, Mestre, Filho de Davi ou Messias.
Sem saber, ele estava em profunda sintonia com o sentido da missão daquele Homem crucificado, a quem o invocava: aproximar-se, encurtar distâncias, viver entre nós como um entre tantos, entregar-nos seu nome e sua amizade, compartilhar de nossa fragilidade, estar tão perto a ponto de escutar o sussurro de todos aqueles que, sem alento, morrem ao seu lado…
O “bom ladrão” reconhece a Jesus na cruz como rei, um rei que morre na fidelidade à sua missão de mensageiro de um projeto de vida diferente, de um Reino de misericórdia aberto a todos, também ao pior dos malfeitores, e que oferece sua vida para indicar o caminho da verdadeira vida que vence a morte: o amor até o extremo. E nisso consistiu sua glória, sua realeza e seu triunfo.
Jesus sempre viveu “em más companhias” e agora morre entre dois ladrões. Mais uma vez, não assume o papel de juiz sobre os outros, mas oferece uma nova chance de salvação. Ele é o moribundo que dá vida: presença solidária, que, mesmo em meio ao pior sofrimento, oferece companhia a outros sofredores.
O Justo e o pecador, ambos crucificados, participam da vida definitiva que a morte terrível na cruz não pode vencer. Jesus é o rei, e o primeiro cidadão que ingressa em Reino é esse malfeitor que confiou n’Ele.
Assim, impactado pela serenidade e testemunho de Jesus, “rouba o paraíso”.
No alto da Cruz, Jesus revela uma promessa que muitas pessoas precisam ouvir hoje, sobretudo aqueles que carregam cruzes injustas e pesadas, que vivem realidades atravessadas pela dor, pela solidão, dúvida, incompreensão ou pranto…
Que ressonância têm estas palavras no interior de cada um de nós: “Hoje estarás comigo no Paraíso”.
Hoje: porque as mudanças, a nova criação, a humanidade reconciliada, não tem que esperar mais; hoje, agora, já…; talvez, se esse “hoje” não chega é por causa de tantas pessoas que não decidem, não optam, esperam sentadas… Comigo: a promessa de viver em sua companhia desperta ecos de uma plenitude que não conseguimos entender.
No paraíso: que não é um mítico Eden, mas lugar de plenitude de vida, onde não haverá mais pranto, nem dor; realidade que já se presente entre nós, sobretudo onde habita a justiça, a paz, a compaixão…
Texto bíblico: Lc 23,35-43
Na oração: Situar-se diante do Rei Crucificado e dos crucificados da história. No nosso atual contexto social, político e religioso são muitos os julgamentos, ódios, mentiras, intolerâncias, precon-ceitos… que continuam crucificando e fazendo vítimas. E tudo isso em nome da “religião e da moral cristã”. O Crucificado Inocente continua revelando seu rosto nos crucificados de hoje.
– Como tirar das cruzes as vítimas inocentes que estão dependurados nelas?
– Como construir hoje o paraíso? Neste momento histórico, como ativar e despertar a esperança nas vítimas?
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ