Ser mais humano/a
“Dai-me somente o vosso amor e a vossa graça, isso me basta” (Inácio de Loyola)
Cada vez mais as mídias sociais invadem a vida cotidiana com anúncios que vendem um determinado modelo de vida. De acordo com esse modelo, a felicidade não está relacionada ao processo de autorrealização do ser humano, ela chega da exterioridade como objeto de consumo. Uma vida realizada e feliz está condicionada ao acúmulo ilimitado de capital e de bens. O ter se tornou o modo de “ser” ou a forma de “ser feliz”. Essa lógica movimenta nossas buscas porque está ligada ao sentido do dever ser. Além disso, o acúmulo ilimitado exige desempenho ilimitado, isto é, trabalho e eficiência sem limites. Contudo, o ilimitado é incompatível com o limite físico e psicológico das pessoas reais. Como resultado, inauguramos a era do esgotamento, vivemos em uma sociedade extremamente cansada e marcada por doenças neuronais. Se ocupar com espaços de qualidade que promovam a autorrealização do ser humano significa transgredir a disciplina do desempenho. Ser mais humano é arriscado na corrida pelo ter e, portanto, na probabilidade de ter uma vida realizada e feliz.
Diante desse contexto, a espiritualidade cristã é interpelada a oferecer o fundamental de sua prática para a construção de uma sociedade humanizada. Sua tarefa é propor um caminho espiritual de encontro com Jesus, que no amor revela a incomparável riqueza da graça de Deus (cf. Ef 2, 7). A experiência deste encontro afeta de tal modo a pessoa que toda sua vida passa a ser determinada por esse momento e sua realidade existencial é percebida com um “antes” e um “agora”. Nesse sentido, um dos testemunhos espirituais mais belos é o de Paulo em At 9, 1- 25. Ao encontrar-se com Jesus, a quem ele ferozmente perseguia, Paulo se converte em servo do Messias e em poucos dias se tona um grande apóstolo de Nosso Senhor. “Antes” perseguidor do Caminho, “agora” Apóstolo de Jesus. Mais adiante, em uma de suas cartas, ele chega a confessar: “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20) e exclama “ai de mim se não anunciar o evangelho” (1Cor 9,16).
Vida em abundância
Na carta destinada à comunidade cristã de Éfeso, logo após exortar os cristãos sobre o grande amor que Deus tem por nós, Paulo escreve que “é pela graça que sois salvos, não por mérito vosso, mas por dom de Deus” (cf. 2,8). Conforme escrito, o Amor de Deus, por meio de Jesus Cristo, nos livrou de toda culpa e nos concedeu a plenitude da vida como graça, como dom, como benefício gratuito e não como consequência de nosso desempenho egóico. Ao experimentar essa verdade, encontramos a verdadeira felicidade e nossa vida se tornar mais flexível diante de uma ideologia desumana. “Porque a letra mata, o Espírito dá vida” (2Cor 3,6). A partir daí, temos a possibilidade de nos ocupar em buscar realizar o bom, o belo e o verdadeiro que existe em nós. Livramo-nos assim do julgo da exploração e caminhamos em direção aos que sofrem para ajudá-los na gratuidade.
A espiritualidade inaciana nos fornece um caminho para a experiência da graça de Deus por meio do encontro com a pessoa de Jesus Cristo. Em seus escritos, Santo Inácio utiliza a palavra “graça” muitas vezes, mas particularmente para relacioná-la à experiência do fiel com o amor de Deus. A oração da “Contemplação para Alcançar Amor”, sugerida para finalizar os Exercícios Espirituais de trinta dias, culmina com a belíssima oração de Inácio que diz “Tomai, Senhor, e recebei…”. Nela encontra-se o pedido “Dai-me o vosso amor e a vossa graça, pois ela me basta”. Trata-se de uma petição profunda, forte, impulsionada por uma corajosa liberdade. Como pano de fundo, está o sentimento de gratidão pelo “quanto Deus nosso Senhor tem feito por mim, quanto tem me dado daquilo que tem” (EE 234). Em conformidade com isso, atestasse que nada é mais importante que procurar, encontrar e experimentar o amor e a graça de Deus em todas as coisas – em mim, inclusive – antes que a qualquer coisa que eu possa “ter”. Essa experiência transborda no desejo de em tudo amar e servir.
Texto Bíblico Ef 2,4-10