SABERES E MACARRÃO
Eguimar Felício Chaveiro
[Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás]
A minha tia Teresa, quase sempre taciturna, fechada, severa e honesta, recebia dos membros da família a avaliação insofismável: “ela fazia o melhor feijão de Goiás”. Também não são poucos amigos e amigas que, com amor nos lábios, caminham até a cidade de Trindade-Go para provarem o arroz com pequi de dona Luzia. Ninguém fecha a conta no primeiro prato. Reconhecem, os visitantes, o que Câmara Cascudo havia percebido: “o estômago é um órgão de amor”.
Num passado recente ouvi com atenção o meu amigo Ricardo Coró fazer uma espécie de aviso filosófico: “você não sabe o que é pão de queijo!”. Numa certa oportunidade, pegamos o carro, atravessamos o rio Paranaíba e lá estávamos no município de Coromandel-MG, especificamente no distrito, literário e sagrado, de Santa Rosa dos Dourados. Não demorou para Maria, ligeira e alegre, emocionada com a presença do filho intelectual, partir para a cozinha. Voltei de Santa Rosa dos Dourados com a certeza de que, até então, eu não sabia o que era pão de queijo. Essa matéria, de interesse epistemológico universal – o pão de queijo mineiro – casa com o veredito de Clarice Lispector: “todas as coisas têm outro nome”. O pão de queijo de Maria tem outro nome. Talvez, amor.
Na casa-laboratório de meu amigo Nilson Jaime, entre livros e coleções de insetos, ouvi com atenção, de sua boca entusiasmada, o prodígio filosófico do mundo das formigas. Depois de falar de seu trabalho de pesquisa, mirando esses seres prodigiosos – as formigas – ele sintetizou o que parece inegável: temos, nós humanos, muito o que aprender com as formigas. O netinho de Nilson Jaime já se tornou amigo dos insetos. O avô pesquisador lhe ensinou o caminho dessa pedagógica amizade. Parece que as palavras do mestre dos mestres, Ailton Freire, reconhecido professor de Matemática da Universidade Federal de Goiás e de Catalão, valem para o caso das formigas e para outros: “tudo que é vida possui segredos. No fundo, todo segredo origina-se da origem da vida. Essa origem ninguém sabe ao certo”.
Eu mesmo, quando morava em Catalão-GO, aberto ao mundo e apaixonado pelo que me circundava, numa noite de luas verbais, juntamente com os meus amigos Julião Borges, Tania Maia, Gilmar Doideira, Valdivino Borges de Lima, Wolney Honório e Elza Stacciarini, apresentei-lhes o que, na época, chamei invenções insignificantes. Estava, na época, desenvolvendo dois projetos: um modo novo de calçar meia e uma forma inteligente de abrir caixa de fósforo. Os projetos, por falta de financiamento, não andaram muito. Mas andou seu objetivo central, promover atoagens poéticas. Isso que é o centro da operação da estética moderna, foi bem constituído. Dali era fácil assaltar o metro e a métrica, convocando o sonho, o delírio e as margens, para comporem o necessário e tenso desafio de viver e amar. De versoletrar, brincolejar, acriançar-se.
Nessa via, o poeta Luiz Carlos Fadel desenvolveu, andando de trem no Rio de Janeiro de Garrincha e Elza Soares, uma apurada técnica de, com rapidez, ler os nomes de trás para frente. O seu cérebro, apropriado para a travessura avessa, constituía o que, hoje, gente da neurociência recomenda: estranhar as sinapses, sair do automatismo,
não aceitar o anestesiamento social. Certa vez, em sua casa, perguntei-lhe para que servia aquela habilidade. Ele sorriu. Pois bem!
Dizem que o rompimento teórico-clínico que o grupo inventor da esquizoanálise procedeu com o freudismo clássico, mediante os seus principais autores, Gilles Deleuze e Felix Guattari, foi o de promover uma mudança na leitura da subjetividade. Ao invés de fazer o regresso à infância e aos traumas primários, a esquizoanálise se faz com a pergunta: O que pode um corpo? O que pode um sujeito?
A resposta da esquizoanálise é objetiva: todos os sujeitos, crianças, adolescentes, homens, mulheres, trans, podem. Podem muito. Descobrir potências, não se acomodar diante dos saberes hegemônicos, enfrentar os muros que impedem que as potências sejam liberadas; gerar deslocamentos; transgredir as pautas costumeiras; ver a riqueza dos encontros e as possibilidades das relações, são o centro desse empreendimento central: “libertar o desejo onde se encontra aprisionado”.
Daí que, pela esquizoanálise, ou pela dialética, pela hermenêutica e pela semiótica; mediante os decoloniais ou anticoloniais, o que emerge como desafio, no atual período, é fustigar os limites dos saberes e os seus proprietários; enfrentar os muros epistemológicos transpondo o vocabulário academiquês; sobrepor as fronteiras disciplinares e, assim, conectar saberes, promover diálogos, gerar núpcias interpretativas; reconhecer que a experiência de povos originários, de comunidades tradicionais e de gente simples, mediante a sua vida concreta, produziram um imenso arquivo de memórias, tecnologias sociais, práticas diversas no trabalho, na cozinha, na música.
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Aliás, outro dia uma amiga, declaradamente doutora em assuntos de prática culinária, disse-me que havia inventado um novo tipo de macarrão: a linguiça ao alho. Ela mesmo procedeu a justificativa: ao assar a linguiça fina enrolada como uma cobra dorminhoca, e salpicá-la com pimenta de cheiro, alho aos montes, dourando-os em banho maria, o que se vê é um macarrão suíno. Se fosse o caso, poderia até registrar a patente. Mas não é o caso. O caso é de amor. Apenas de amor.
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OBS. Os textos expressam a opinião de seus autores, não necessariamente coincidente com a dos coordenadores do Blog e dos participantes do Fórum Intersindical. A cada reunião ordinária, os textos da Coluna Opinião do mês são debatidos, suscitando divergências e provocando reflexões, na perspectiva de uma arena democrática, criativa e coletiva de encontros de ideias em prol da saúde dos trabalhadores.
- O texto que você leu, foi elaborado pelo Professor Dr.º Eguimar Felício Chaveiro – UFG, e publicado em nosso site por Fernando Tonheira (Agente Pastoral do Centro Loyola de Goiânia)