Pura alegria de ser
“Deus colocou o senso da eternidade no coração do ser humano” (Ecl 3,ll)
A árvore inútil Tzu-ki atravessa a colina de Chang. Ele percebe uma árvore surpreendentemente grande. Sua sombra podia cobrir mil carroças com quatro cavalos. “Que árvore é essa?” pergunta-se Tzu-ki. “Para que pode servir?” Olhando-a de baixo, seus pequenos ramos curvos e torcidos não podem ser transformados nem em vigas nem em cumeeiras. Olhando-a do alto, seu grande tronco, nodoso e rachado, não pode servir para fabricar coisa alguma, nem mesmo caixões. Aquele que lamber suas folhas ficará com a boca ulcerada e cheia de abscessos. Só de sentir o seu cheiro fica-se logo tonto e embriagado por três dias. Tzu-ki concluiu: “Esta árvore não é realmente utilizável e, por essa razão, conseguiu atingir tal porte. Ah! o homem divino, por sua vez, não passa de madeira que não pode ser utilizada.”
Ser inútil como aquela árvore que não vivia pelos usos que pudesse ter, mas pela pura alegria de ser. Colheres, facas, vassouras, martelos, pentes são todos úteis. Sua razão de ser é aquilo que se pode fazer com eles. São ferramentas, meios, pontes, caminhos para outras coisas diferentes deles. Em si mesmos, não dão prazer nem alegria a ninguém.
Inutilidade: uma sonata, um poema, um cálice de licor, uma obra de arte, uma pipa na mão do menino, a boneca no colo da menina, a mão querida que nos toca. Não servem para nada. Não são ferramentas úteis para realizar tarefas. Nem são caminhos ou pontes. Quem tem essas coisas não precisa nem de pontes nem de caminhos, porque com elas cessa o desejo de ir. Não é preciso ir, porque já se chegou lá, no lugar da alegria. O prazer e a alegria moram na inutilidade.
Todos querem ser ferramentas
Compulsão prática: esta é a doença terrível e mortal que ataca jovens e adultos. Todos eles querem ser úteis. Todos querem morar do lado das facas, martelos, vassouras. Os que vivem sob a compulsão da utilidade preocupam-se só com o fazer.
E o tempo todo estão em busca de algo inalcançável que se encontra depois de terminada a tarefa, ao fim do caminho, do outro lado da ponte, e que se afasta sempre. Com o advento do utilitarismo a pessoa passou a ser definida pela sua produção: a identidade é engolida pela função. E isto se tornou tão enraizado que, quando alguém nos pergunta o que somos, respondemos inevitavelmente dizendo o que fazemos. Com esta revolução instaurou-se a possibilidade de se gerenciar e administrar a personalidade, pois que aquilo que se faz e se produz, a função, é passível de medição, controle, racionalização.
É mais ser do que fazer
Devemos habitar um mundo em que a interioridade faz a diferença, em que as pessoas se definam por suas visões, paixões, esperanças e horizontes utópicos. “Os que vivem sob a graça da inutilidade não querem chegar a lugar algum. Porque já chegaram. Quero ficar na sonata, no poema, no licor, no bonsai, na pipa, na boneca, na mão que me toca. Por isso amo as pessoas divinas, árvores solitárias na colina, madeira que não pode ser utilizada. Amo aqueles que se entregam a gestos loucos e inúteis – pela pura alegria de ser”. (Rubem Alves)
Texto Bíblico Ecl 2, l7-26 / Ecl 3, 9-l5