O medo à mudança esvazia qualquer “boa notícia”
O medo à mudança esvazia qualquer “boa notícia”
“E Jesus se tornou para eles uma pedra de tropeço” (Mc 6,3)
O evangelista Marcos nos apresenta Jesus como o grande Mestre em sua própria terra: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. Tal ensinamento, cheio de “autoridade”, abre uma perspec-tiva nunca ouvida antes; apresenta uma alternativa diferente de viver e alimenta um espanto entre as pessoas.
A cena na sinagoga de Nazaré é impactante. Chama a atenção, antes de tudo, a “ousadia” de Jesus: ele, o carpinteiro do povo, sem título algum, ensina na sinagoga e se apresenta como mestre, diante da admiração de todos. Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. A surpresa, o desapontamento e o conflito que Ele provocou, ensaiam cada dia novas palavras e novos gestos.
O início da vida pública de Jesus começou a desconcertar muitas pessoas; Seu modo original de falar e agir, sua liberdade de espírito e seus critérios desconcertaram a todos. Diante d’Ele só lhes restava fazer perguntas: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria… E suas irmãs não estão aqui conosco?”
E Jesus tornou-se “pedra de tropeço” para seus familiares e vizinhos.
Jesus não foi um homem qualquer e sim alguém que despertou a atenção em todos. Diante dele não era possível permanecer indiferente; era preciso decidir. As pessoas perceberam n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento despertou o assombro e a admiração.
Os conterrâneos de Jesus compreenderam que precisavam realizar uma mudança em suas vidas. E isto os inquietava: estavam tão tranquilos até aquele momento.
O novo ensinamento de Jesus desencadeou nos ouvintes uma crise: era preciso decidir porque no ensinamento d’Ele se dá uma divisão entre luz e trevas, vida e morte… Quem aderir à sua pessoa e mensagem, encontrará uma saída feliz e libertadora da crise: a vida plena, com sabor de eternidade.
A crise que Jesus provocou entre os seus visava redimir o ser humano, isto é, tirá-lo de seu horizonte limitado e estreito para elevá-lo a um horizonte amplo, próprio de Deus.
Jesus proclamou uma mensagem que instaurava uma crise radical para a situação social, religiosa, polí-tica e humana da época. No Evangelho de hoje, Jesus provocou, por suas atitudes e palavras, um cisma nos seus conterrâneos, isto é, produziu uma crise que levou a uma ruptura-decisão pró ou contra Ele.
Jesus pôs o mundo em crise. Ele veio para provocar uma derradeira decisão das pessoas pró ou contra Deus, agora manifestado em sua pessoa, em seus gestos e em suas palavras.
Ele não foi simplesmente a doce e mansa figura de Nazaré; foi alguém que tomou decisões fortes, teve palavras duras e não fugiu das polêmicas.
Jesus foi “deletado da sinagoga” porque ousou pensar de maneira diferente; o seu anúncio e as suas opções rompiam com esquemas mentais arcaicos e petrificados.
Mas Ele não se deixou domesticar e nem se acomodou às expectativas de seu povo. Aos seus olhos nada é mais perigoso para o espírito humano do que vidas satisfeitas, que não investem seu tempo alimentando sonhos e esperanças; mentes sem inquietações, sem o impulso das buscas; corações quietos, acomodados, ajustados, medrosos, covardes, petrificados, sensatamente contentes com aquilo que são e têm.
Há uma “normalidade doentia” que reprime a nobreza potencial no humano. Para Kierkegaard, “ser um homem normal é ser doente”. Há uma saúde fictícia, caracterizada pela ausência de um sentido maior, pela atração ao conformismo coletivo, pelo medo de expor-se, de arriscar-se a ser…, pela incapacidade de assombrar-se diante dos acontecimentos e encontros cotidianos. “Tudo torna-se tão normal… e sem sal”; nada afeta, nada causa admiração ou espanto.
Vida morna, sem sabor, sem criatividade; incapacidade de transfigurar a existência cotidiana.
As perguntas que surgem do encontro com Jesus na sinagoga nos oferecem, assim, uma imagem daquilo que, com frequência, também nós vivemos: o julgamento que fazemos dos outros, o nosso preconceito e a nossa intolerância diante de quem pensa, sente e vive de maneira diferente.
Nos “templos pós-modernos” (redes sociais) temos a oportunidade de proferir palavras que ampliam a vida, elevam o outro, abrem horizontes de sentido…; elas também se revelam como o espaço onde escutar palavras oriundas de um coração e uma mente diferentes, que despertam mudanças, a busca do novo…
Infelizmente, como nos tempos de Jesus, também este ambiente tem sido o local da expressão de palavras ásperas de julgamento e de indiferença, carregadas de preconceito e intolerância. Ali encontramos a soberba disfarçada de verdade, o conservadorismo farisaico que cria distâncias, o medo camuflado de firmeza, as
inseguranças alimentando divisões… Estas atitudes nunca deixam espaço para o novo, a mudança torna-se impossível e a inovação se extingue… Nesses ambientes disfarçados de ortodoxia, fundamentalismo, mora-lismo, legalismo… nem o Espírito tem espaço para atuar e inspirar “palavras de vida”.
Aliado ao conformismo e à segurança, aparece o medo da mudança. A pessoa fecha-se no conhecido por medo do desconhecido. Marcada pela “normose”, ela fica presa no interior de uma pequena toca.
Para quem não está disposto a ousar transparecer, a prisão da toca pode ser mais atraente do que o desco-nhecido proporcionado pela liberdade. “Em uma cabeça com medos não há espaço para sonhos”.
O medo das trilhas criativas da originalidade gera hábitos fechados, ideias fixas, conservadorismo, rotina sem sentido, ações insensatas (sem sentido, mecânica, automática, sem novidade…); sabe “fazer” mas não sabe “criar”; faz o que os outros mandam e faz bem, mas sem paixão, sem emoção, sem inspiração…; é perfeccionista, para satisfazer as expectativas dos outros e não ser criticado…
Por não viver a partir do seu próprio interior, a pessoa deixa de ter horizontes, de sonhar, de desejar…; tem medo de fazer a “travessia” pois não tem direção, não tem projeto. Daí o desânimo existencial.
O desafio é este: ousar ir além ou se conformar, evoluir ou estagnar, ser original ou mero repetidor…
Existe em nós um desejo de plenitude e, ao mesmo tempo, o medo de arriscar, a pulsão de vida e a pulsão de morte. A normose (normalidade doentia) está relacionada com a pulsão de morte. É a estagnação ou morte do desejo, travando o fluxo da vida.
É preciso sair dos trilhos conhecidos e viciados da normose para tomar as desconhecidas e criativas trilhas evolutivas, nas quais o ser humano enfrentará seus medos e florescerá com vigor e ternura; urge fazer o êxodo da estreiteza de nosso ser à largueza do coração.
É uma grande aventura tornar-se humano, sujeito da própria existência, ser dotado de um semblante único e assumir a direção dos próprios passos, realizando assim, a aspiração profunda de seu coração.
O novo sempre vem e sempre nos surpreende. E o risco é a essência de uma vida espiritual integrada.
O risco fortalece, revitaliza, faz fluir a adrenalina através da corrente sanguínea de nossa vida, faz com que de novo mereça a pena viver a vida.
Como são humanamente repletos de vida aqueles que ainda se encantam com as buscas! Sua vida é penosa, sem dúvida, mas repleta de razões, fervor, criatividade, entusiasmo e vitalidade.
O ser humano é um eterno enamorado de es-peranças, um ousado, um contestador de tudo.
Assim foi Jesus; e somos seguidores(as) deste Homem original e “transgressor”.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração: Não são os títulos que dão testemunho de nosso seguimento de Jesus, mas a luminosidade de nossas vidas. E ser seguidor(a) de Jesus é ser presença que faz diferença, que rompe a “norma-lidade” estéril e desperta a criatividade.
– Repassar o seu cotidiano: carregado de buscas ou travado pelo medo? Espaço do encontro com a surpresa do novo ou mera repetição burocrática?
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ