Centro Loyola de Fé

O gosto doce da recusa

A minha mãe, com riso bom na boca, gosta de relatar as minhas birras na infância. As birras eram tão implicantes que até hoje me lembro de algumas quando, talvez, tivesse apenas 5 ou 6 anos de idade. Havia um esquema na realização de minhas birras: usava, na época, o que se me dispunha, lágrimas correntes; sussurros doloridos, gestos corporais inegociáveis de recusa. Não sei dimensionar a razão subjacente daquelas birras que, a meu ver, eram presságios de uma personalidade que, mais tarde, foi sendo habilitada na difícil – e magnífica – tarefa de se compor no mundo. Essa composição, todos sabemos, é complexa, instigante, desafiadora e supõe o outro. Por isso, escrevemos e dizemos a nossa vida em relações, tensamente, aprendendo, retocando-se, lutando arduamente para fazer equilibrar pão e desejo. Lembro também de, na escola, correr dos colegas que me chamavam para realizar as estratégias “da cola”. Não tinha um juízo moral sobre a falcatrua corrente dos colegas, nem era movido por uma culpa antecipada se acaso me inserisse no pleito. Considerava apenas, mesmo sem pronúncia justificadora, que não deveria fazer aquilo. Pronto. A cola estava recusada. As notas ruins que, por acaso, recebia, desciam rasgando o peito, mas o problema não seria resolvido pela cola. Também não gostava de chegar atrasado nos treinos do futebol, nem de furtar os exercícios físicos que deveria realizar. Mais tarde, quando trabalhava num supermercado como entregador de gás, recusei a fazer pequenos furtos de refrigerantes e salame. Muitos colegas faziam, contudo, eu não os demonizava. Segui o meu trote. Entretanto, em várias circunstâncias da vida, cedi em que não deveria fazê-lo; contemporizei o que poderia não ter admitido; fiz conciliações, algumas necessárias, outras nem tanto. Errei por excessivo silêncio, como por excesso de fala. Deveria ter incendiado Roma. Ou umidificado o ambiente com presença amorosa. Não montei a melhor equação, tenho certeza disso. Por isso, não devo me gabar em nada, nem pelas birras infantis, das quais, não posso mentir, sinto-me hoje clandestinamente orgulhoso, nem devo fazer o lance masoquista que diminui a si mesmo para chegar ao outro pela via da chantagem. Penso que reconhecer as conquistas não dá direito de esquecer os erros; e penso que notificar os próprios erros pode ser prenda necessária para fomentar as conquistas. Haveremos de compreender: a coragem à recusa equivale à dignidade da adesão. ………… Pois bem! Mas não há como empenhar a crença na vida, a defesa da dignidade, a consideração do caráter e o engajamento político e amoroso por uma sociedade estruturalmente fraterna e solidária, sem proceder grandes recusas. E não há como recusar sozinho, desamparado, destituído da mão do Outro, cuja relação de afinidade motiva a nossa coragem de recusar. Numa sociedade, como a brasileira, acostumada à “política das mercês” e à violência codificada e aceita, há que se recusar o puxa-saquismo, o compadrismo de coronel, o estrategismo burocrático, a aceitação barata da bajulação. Penso também ser necessário recusar o bom-mocismo, a acomodação no modo de ver, como as filiações fáceis aos jargões e aos slogans que simplificam os problemas humanos em esquemas redutores. E sem gosto. Ademais, no Brasil atual, há que se recusar a sombra covarde do escravismo e a sua atualização simbólica em forma de preconceitos e armas; há que se recusar o cutelo eterno que decepa braços de camponeses e faz expandir o riso rico do latifundiário; há que se recusar a vanglória da fama, assim como a anestesia da omissão. Por conseguinte, recusar os ditadores e seus séquitos; os fascistas e seus gritos; os mitos e suas falsas divindades supõem, no fundo, recusar o que cria a impotência do desejo, da liberdade e do gozo. Recusar sapatos apertados, gravatas infames, palavras insossas, a culpa no peito, a vontade amassada, a pressão do imposto, a ameaça do ditador, as negociatas do hipócrita. A vida laboratorial… cosmética. A recusa, como se vê, é a maior forma de crença. Não dá para crer na justiça não recusando o que promove a injustiça; e não dá para combater a injustiça não realizando a justiça. A recusa é um ato de coragem – e de amor. Parece – e é – difícil inicialmente recusar. Depois, passado algum tempo, chegará o gosto doce da recusa. O gosto doce da recusa não se encontra no supermercado, pois está vinculado às significações profundas de que viver é sentir e lutar

Eguimar Felício Chaveiro

Colaborador do Centro Loyola de Goiânia- GO

Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás

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