Centro Loyola de Fé

O CADERNINHO VERMELHO

Aprendi, ao andar pelo mato, ou, à tarde, ao visitar o bar do João Gordo, carregar um caderninho vermelho.      Ocorre de ir no estádio do futebol e também levá-lo. Carrego-o quando faço pescarias de poentes no Araguaia indígena. Sob o rito das metáforas, em que uma coisa se transmuta em outras, o meu caderninho vermelho, no fundo, é um anzol de pescar. De pescar mundos. O caderninho vermelho é meu amigo inseparável. Desses que não me deixam para trás. Embora, vou lhes dizer, Ele é falastrão. Além de falar muito, deseja sempre ter olhos de águia. Quer ver tudo.

A sua intenção é ver as circunstâncias sem preconceitos ao que parece, diante do olhar hegemônico, inútil e marginal. Até diria que Ele tem preferência pelas faíscas dos acontecimentos, pela sutileza da memória e pelo que não é comum. Pelo que é esquecido. Ele me provoca. Abro-o e Ele me diz: “você ‘tá vendo esses sujeitos carcomidos pelo crack, essas crianças de olhos esbugalhados vendendo balas? Você está vendo esses jovens de rosto curtido pelo sol pedindo pra lavar os para-brisas dos veículos no tempo do sinal?…você ‘tá vendo? Você‘tá vendo ou foi tragado pela fumaça do tempo? Ele me provoca muito. Como o próprio se intitula, Ele é uma sonda ótica, uma breve luminária gráfica feita de celulose e palavras. Olha tudo, guarda as coisas que vê nas folhas brancas e depois me pede para conectá-las. Geralmente não fica satisfeito com a minha conexão, então pede para que eu estruture a consciência diante dos índices e sinais anotados. Com certo capricho intelectual me diz não haver distância entre o signo e as coisas, embora não sejam sinônimos. Ele me complica. Nesse ponto, que é essencial para a vida longa de um caderninho vermelho, recebi d´Ele uma lição. Sempre não se fala o que se quer ao Outro. O Outro que ouve nunca vai entender tudo o que lhe é dito. O que se diz, ao dizer, desliza. Mas dizendo, de alguma forma, o interesse se aflora. E ao mesmo tempo se esconde. Por isso, a linguagem – escrita, verbal, extra verbal, icônica -, é cheia de furos. Os furos da linguagem, diz o caderninho vermelho, são os furos da própria vida, eis a irrecuperável brecha humana. Daí, que Ele, o caderninho vermelho, recorre a Bernardo Soares para sacramentar: “não vemos o que vemos.

O que vemos é o que somos”. Com certa pompa, o caderninho ri de mim e de si: “somos um organismo errante e imperfeito. É isso!”. É isso! Aliás, por tudo isso, o caderninho vermelho me lança numa grande peleja. Exige que não me acostume com a fome do Outro, com o sofrimento impiedoso dos desempregados, com a cretinice dos que, ao invés de pensar a solidariedade de classe, competem, se juntam aos algozes destilando a sua raiva nos iguais.             O caderninho vermelho existe para me desassossegar. Ele cunha os meus passos e me faz sentinela do mundo.       Do meu lugar no mundo. Ele demole a minha índole à repetição e insinua, com frequência, a minha responsabilidade com a miséria humana. Ele pede a minha atenção como solicita o meu laço fraterno com os que se encontram comigo na mesma batalha, na mesma esteira, no mesmo caminho. Constantemente solicita a minha fraternidade não ao modo da piedade dos que se colocam superiores aos que sofrem; não ao modo da culpa dos que rezam, rezam, rezam, apenas rezam e deixam o mundo concreto se plasmar nas teias de aranha conservadoras.      Ele quer desestabilizar o meu comodismo e, conforme Clarice (Lispector), me conduzir ao susto com o “fogo vivo das coisas”. Sem esse susto, diz o caderninho, não há beleza, não há mudança, não há vida. Já aconteceu, isso eu lhe posso garantir, de me encontrar comprando jiló na feira de Trindade, de repente, a partir de um efeito associativo complexo, vir, não sei de onde, um tema ou uma imagem em minha cabeça. Deixo o jiló na banca do Seu Sinhô e corro para o carro em busca do caderninho. Os jilós que me desculpem! Com intercalada frequência vou a um bar (acho que já falei isso para vocês), pego uma caneca de chopp e entorno rapidamente o bom líquido.                        Abro o caderninho, faço pose de poeta e justifico a próxima caneca com a concessão alcoólica dada aos poetas.    Anoto algo. Algo besta. E antes de sorver o chopp sinto-me, como Baudelaire, embriagado de vida, de mundo, de humanidade, de amor. No momento em que abro o caderninho e escrevo um tema, uma coisa, um índice, qualquer nota, sinto que o mundo é bom. Depois passa, como tudo. De repente, o abro novamente, aí o mundo fica bom de novo. O meu caderninho vermelho é um termômetro do mundo, do meu mundo simples, das coisas que, para mim, possuem sentidos e significados. Coisas à toa. Interrogações brejeiras. O meu jeito. O que quero lhe falar é simples: geralmente tenho temas a tiracolo. Ideias, sonhos, fantasias, projetos, desejos. Eles surgem e estão no meu caderninho vermelho. Mas o mais importante é a inclinação do olhar, o sentimento que decorre do instante, a transformação do mundo numa pauta literária recorrente. A imersão do meu corpo no que, aparentemente, é reles e frugal. O mais importante é o movimento do caderninho. A sensação de que tudo vibra por dentro e por fora. Desculpem-me a ousadia: às vezes, eu acho que o caderninho vermelho sou eu.

 

Eguimar Felício Chaveiro [Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás]

 

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