Centro Loyola de Fé

O breu grávido de estrelas

Em conversa com uma amiga concluímos que o período pandêmico acionou muitos vetores da alma humana, especialmente da alma brasileira.

Na fase inicial da propagação da covid-19, sem que deliberasse, reconstituí os arquivos clandestinos da infância. A memória funda da infância talvez solicitasse a vida diante do perigo coletivo de morte.

Tinha 5 ou 6 anos. No começo das noites quentes, ainda quando morávamos na roça, meu pai pegava em meus braços e me conduzia ao terreiro noturno. Ajeitando-se num lugar seguro, erguia-me aos ombros para me aproximar do breu dilatado do céu.

O baile das estrelas, algo misterioso e encantador, suscitava uma invenção dos dedos paternos.

Até hoje a minha posição – para a justiça das galáxias – é simples: o meu pai inventou as estrelas.

Com simplicidade, o pai nomeava uma constelação, dizia o nome de uma estrela, contava a história de outra. Certamente inventava uma história desprovida de amparo astrológico, astronômico ou dos códigos da astrofísica. Não sabia, mas o breu grávido de estrelas era o rudimento de uma aula de imaginação, de sonhos e de amor pelo infinito. Tudo se enchia de significado.

A operação se justificava por uma condição simples: o professor de imaginação era meu pai, um negro-indígena, filho de camponeses e de gente da roça.

Embora, ele mesmo tivesse índole urbana, a sua pouca escolarização o fazia inventivo ao modo dos contadores de causo do sertão goiano. Ao definir o breu grávido de estrelas como território de encantamento pelo céu, o que o pai almejava era me fazer encantado pela vida.

Depois de tantos anos, aquele episódio simples, e certamente involuntário do pai, parece evocar o irresistível palpitar da minha imaginação.

Estou sempre querendo ver nas coisas mais do que elas mesmas; querendo mais do mundo, das pessoas e da minha própria conduta. Há sempre “um mais” saliente que me provoca – e me move -, embora um tanto assustado, perplexo e encantado.

Lembro de o psicanalista, filósofo, educador e poeta Rubem Alves, observando a sua própria experiência, dizer de pequenos lances que, no momento que ocorrem parecem ser ínfimos, sutis e quase inúteis. Muitos desses lances são espontâneos, furtivos, distraídos até. São apenas a ervilha jogada no mar. Posteriormente, contudo, podem se cristalizar em arrebatamentos fundamentais para que, olhando-os, o sujeito dê vazão à peleja do sentido, da significação da vida e, inclusive, da coragem para dizer que, com sensibilidade, com determinação e com intensidade, tudo na vida se abre e se refaz como a cauda de um pavão tropical. A escolha de pontos fulminantes da memória da infância, ou a infância que se escolhe para nos acompanhar nas dobras duras da condição de adulto, é provável que tenha portas secretas no delicado labirinto da vida social concreta e de sua relação com a mente. Mas todos podem escolher e dedicarem-se a refazer, inclusive, o passado.
Incrível é que as aulas de imaginação involuntárias de meu pai no terreiro de nossa casa simples acendem, hoje, a luz de minhas aulas na universidade. Depois de percorrer, por décadas, os corredores das universidades, que, quase sempre, possuem uma temperatura fria e dissimulada, juntamente com colegas e parceiros, defendo o casamento pedagógico e científico entre conceito, experiência e imaginação. Esse casamento decorre de uma núpcia epistêmica: a ciência não pode se arrogar como a dona do saber se a experiência concreta das pessoas não é o seu centro; e a arte não pode furtar o que é seu fundamento: permitir que o sujeito da experiência seja capaz de sonhar e transgredir. Portanto, ciência e imaginação, e imaginação e experiência, podem ser o cordão amoroso que liga realidade e sonho.

Outro dia, num papo descontraído com o meu amigo Márcio Melo (Universidade Federal do Tocantins – Araguaia), professor de literatura africana, falei-lhe de minhas traquinagens estéticas nas aulas. Falamos posteriormente da necessidade da transgressão aos ritos burocráticos, muitas vezes, impiedosos com quem tem o rosto simples e a origem semelhante. Não podemos, concluímos, eu e ele, fingir o nosso mundo. Temer o próprio desenho da face é uma rendição ao estatuto do poder equivocado dos diplomados. Mas sempre se encontra parceiros imaginativos e de coragem criadora. Jamais, mesmo com a força aniquiladora dos processos criadores – e criativos, a burocracia universitária, ou qualquer outra, vai conseguir apagar a centelha de estrelas perambulando no céu.

É só ir para o terreiro, lá está o breu grávido de estrelas.

Eguimar Felício Chaveiro

Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás.

Assessor no Centro Loyola de Fé, Cultura e Espiritualidade

 

 

 

 

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