Espiritualidade inaciana: um modo de ser uma escola de vida
A Espiritualidade Inaciana como “princípio e fundamento” da missão educativa na Companhia de Jesus.
Partimos de um pressuposto que é o fundamento de todo o processo educativo: “a dimensão espiritual é parte constituinte e essencial do ser humano”.
No entanto, a educação, de maneira geral, prescindiu desta dimensão e nenhum currículo o incorpora. Fala-se, por exemplo, de educação integral, de toda a pessoa, e, no entanto, elabora-se currículos escolares nos quais jamais aparece o desenvolvimento pedagógico da dimensão espiritual, cabendo às religiões assumirem a responsabilidade
de desenvolvê-la (pastoral, catequese, ensino religioso…).
É claro que não se pode confundir “dimensão espiritual” com “religião”. A espiritualidade é uma das fontes primordiais, de inspiração do novo, de esperança alvissareira, de geração de um sentido pleno e de capacidade de auto-transcendência do ser humano. Todo ser humano tem uma espiritualidade que o acompanha e se faz visível
no seu modo de ser, de sentir, de agir, de se relacionar… e que o sustenta diante dos desafios da vida. Espiritualidade tem a ver com o “sentido” que descobrimos na vida, nos fatos, nas situações cotidianas com as quais lidamos. É um modo de “ler”, refletir, interpretar e responder às questões profundas de nossa existência. Ela dá cor à nossa
visão, música à nossa audição, sentido à nossa fala, expressão ao nosso corpo…
Essa dimensão espiritual se revela pela capacidade de diálogo consigo mesmo e com o próprio coração, se traduz pelo amor, pela sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do outro, pela responsabilidade e pelo cuidado como atitude fundamental.
A partir da espiritualidade tudo se transfigura, tudo tem sentido, tudo vem carregado de veneração e sacralidade.
Ativar a dimensão espiritual é desenvolver a nossa capacidade de contemplação, de compaixão, de assombro, escuta das mensagens e dos valores presentes no mundo à nossa volta.
A Espiritualidade aparece precisamente como experiência humana por excelência.
Espiritualidade é a nossa dimensão divina em tudo que é humano. É preciso resgatar, nos projetos de Reforma Educativa e nos programas curriculares, a força, a beleza e a fecundidade da dimensão espiritual de todo ser humano. Conseguir que a dimensão espiritual seja de fato e operativamente reconhecida pelos investigadores e profissionais da educação é uma tarefa urgente.
Neste contexto, tem todo sentido inspirar a educação numa espiritualidade humanizadora, encarnada, criativa, dinâmica… como a espiritualidade inaciana.
A Pedagogia Inaciana tem argumentos históricos e argumentos intrínsecos para inspirar-se na Espiritualidade de S. Inácio de Loyola. Mais ainda, como colaboradores nas obras educativas da Companhia de Jesus temos, como desafio, a responsabilidade e a coerência de promover uma educação holística, inspirada na proposta do Mestre dos
mestres, Jesus de Nazaré.
Para S. Inácio o conhecimento não é o objetivo, é uma estratégia. Com ele a pessoa se conhece e reconhece a si mesma, conhece a Cristo, conhece os dons de Deus e tem acesso a Deus; por meio desse conhecimento inspirado pelo Espírito chega-se à sabedoria e ao amor, reforma-se a vida, dando-lhe uma qualidade, situando-a em suas
verdadeiras coordenadas e revitalizando-a até a plenitude.
Mais ainda, tal conhecimento é fruto de complexas atividades mentais, intelectuais e espirituais estrategicamente orientadas e processadas. O conhecimento profundamente espiritual é um dom de Deus que às vezes se manifesta
como dom de conselho, ou dom de ciência, ou dom de entendimento, ou dom de sabedoria.
Aquilo que S. Inácio nos propõe nos Exercícios Espirituais é impressionantemente rico e atual para o campo da educação, sobretudo por nos ensinar a desenvolver, de maneira integrada, os chamados “três olhos do conhecimento”: o “olho dos sentidos”, o “olho da razão” e o “olho do espírito” (Ken Wilber).
1. a) A experiência dos Exercícios nos capacita a olhar (contemplar) a realidade em sua globalidade.
Inácio foi um homem de grandes perspectivas: atraía-lhe a contemplação das estrelas, a vastidão do espaço que refletia a universalidade, o amor de Deus que abarca a totalidade. Tudo quanto existe despertava a sua curiosidade insaciável: os olhos de seus sentidos, os olhos de sua imaginação, os olhos de sua mente e os olhos de seu espírito se
abriam e se encantavam diante de toda a realidade existente, incluindo tudo para tudo contemplar. Nesse sentido, é característico de S. Inácio, de sua pedagogia e de sua metodologia, uma visão radicalmente cósmica: nos Exercícios ele conduz o exercitante a se situar no contexto do universo (“todas as coisas criadas sobre a face da terra”), para fazê-lo tomar consciência de sua responsabilidade no mundo e diante do plano de Deus; trata-se de uma experiência integrada na comunidade universal.
Esta cosmovisão do amor que plenifica tudo, abarca o próprio Deus, a quem Inácio vê presente em todas as criaturas e “trabalhando” por nós. Esta visão global da pessoa imersa na realidade dá atenção especial às relações de todos
os protagonistas deste cenário universal e transcendente. Não há partes isoladas e nem seres simples. Tudo está religado, interativo e é complexo. A segmentação da realidade para conhecê-la mais profundamente desvirtuou a qualidade da experiência e, portanto, do conhecimento, porque nenhuma parte da realidade se explica e se justifica por si mesma. A física subatômica nos obrigou a ver de outra maneira e a entender que efetivamente nada é simples, tudo é complexo e tudo está relacionado, interligado.
E o mais interessante é que não se trata de relações passivas, estáticas; trata-se de relações nas obras, na interação, dinamizadas pela energia do Espírito que além de luz são fecundas e transformadoras. A pedagogia inaciana implica um novo modo de ver, conhecer e estar presente no mundo e no cosmos, de ser em relação, em comum ação, para a integração e unidade.
1. b) Esta experiência holística implica uma nova visão do ser humano. S. Inácio, nos Exercícios, começa situando a pessoa humana em seu centro de atenção.
Os Exercícios partem do ser humano: “o ser humano é criado para…” Por isso, eles põem em movimento todas as dimensões do ser humano: corpo e espírito, sentimento e inteligência, imaginação e reflexão, memória, entendimento e vontade… Todos os recursos e capacidades humanas se mobilizam para chegar a suscitar os afetos, a tocar o coração, onde todas as vivências se unificam e a pessoa recupera uma força e dinamismos eficazes.
Os Exercícios Espirituais visam ajudar o exercitante, diante de Deus, a tomar a própria vida nas próprias mãos e tornar-se mais humano. Por isso, ele é colocado em condições de construir-se a si mesmo, ampliar seus horizontes estreitos e optar por ser um eterno peregrino. E esta trajetória, na realização de sua humanização, não tem fim, pois os Exercícios despertam o continuo dinamismo do crescimento integral, o seu amadurecimento e o seu comprometimento num mundo e numa sociedade onde impera a desumanização. É nesse contexto de profunda desumanização que a Pedagogia Inaciana revela sua atualidade e sua força transformadora. Centrada na pessoa, tal pedagogia mobiliza e reordena todas as suas dimensões e propõe um caminho de plena humanização. Ela
desafia cada um a assumir o potencial humano criativo que está latente em seu interior, pois nada do que é “humano” lhe é estranho.
“A arte de olhar a humanidade à maneira de Inácio, é reflexo da bondade, benignidade, simpatia de Deus pelo ser humano. É daqui também onde brota o reconhecido humanismo como característica da espiritualidade inaciana: uma visão completa e amável do ser humano, de seus problemas e vicissitudes, uma sensibilidade para todo
valor humano e um grande interesse em promover o ser humano enquanto tal, consciente de que isso forma parte da Redenção que se iniciou com a vinda do Verbo” (I. Iglesias, sj).
1. c) A ativação de todos os sentidos (internos e externos), durante o processo dos Exercícios, enriquece a experiência e torna a pessoa muito mais intuitiva e criativa. Com freqüência, S. Inácio coloca o exercitante em condições de pensamento criativo, ativando sobretudo o hemisfério direito do cérebro. Todas as contemplações e parábolas inacianas (Reino, Bandeiras, Binários…) mobilizam o exercitante para que “re-construa”, criativa e pessoalmente, o contexto dos fatos com a máxima aproximação possível da verdade. E uma vez imerso no cenário com seus protagonistas, a inspiração do Espírito com a capacidade criativa do próprio exercitante criam juntos os fluxos de comunicação, a observação ativa e passiva e a criação de uma nova maneira de entender-se e de
entender o mundo e a sua missão dentro dele.
Essa criatividade íntima pode chegar a níveis originais com a metodologia dos exercícios da “aplicação de sentidos”. As idéias, os sentimentos, as intuições… adquirem nova luz, se revitalizam e penetram em todo o ser do exercitante. O contemplado é recriado originalmente e se faz vivência e experiência inédita e inefável com os sentidos interiores.
1. d) Os Exercícios incorporam uma atitude crítica para poder chegar ao autêntico conhecimento da verdade, sobretudo da verdadeira Vontade de Deus, que é o objetivo prioritário e o sentido de nossa vida.
Em um mundo visto globalmente, submergidos na complexidade da realidade e em nossa própria complexidade interior, para evitar a confusão, o engano, a desorientação, os erros de percepção, interpretação, conceitualização e juízo, é necessário contar com elementos críticos para assegurar que alcancemos a verdade e a “vida verdadeira”. A atitude crítica está inspirada na insistência de Inácio para observar, “examinar”, avaliar constantemente o que vivenciamos e o que fazemos. Ele nos ensina a discernir não só idéias e sentimentos, mas o “espírito” que nos move e suas manifestações características, a conhecer e identificar a existência e os movimentos do Espírito Santo
que atua em nós.
O mais profundo da atitude crítica está desenvolvido por Inácio nas regras e recomendações que dá para o “discernimento de espíritos”, especialmente quando estão em jogo as decisões fundamentais de orientação da vida.
Adroaldo Palaoro, SJ