Esperança de se dar bem ou medo de se dar mal?
Luiz Sureki, SJ
A pergunta provocativa assim formulada dá o que pensar! Seria a nossa esperança de um bem possível de ser conquistado uma representação invertida de um mal possível de ser evitado? Será que fazemos o que fazemos, defendemos os valores que defendemos por medo de, no fim, de algum modo, nos darmos mal? Mas, o que a esperança teria a ver com o medo? Não é a primeira o impulso que experimentamos para nos lançar à consecução de um bem, e o segundo a paralisia que sentimos pela ameaça da irrupção de um mal?
Pensemos. Se a esperança de ser dar bem é ou fosse tão somente a face oculta do temor ou medo de se dar mal, então haveríamos de supor que se, por alguma razão, desaparecesse a possibilidade do se dar mal, desapareceria também o medo que o acompanha. Ou ainda: se desaparece a possibilidade de se dar mal é porque a possibilidade do se dar bem tornou-se uma certeza. Mas será que desaparecendo a possibilidade do se dar mal, não desaparece também a esperança do se dar bem? Com efeito, a esperança do se dar bem está calcada na possibilidade de que isso aconteça, e não na certeza absoluta que assim haverá de ser/acontecer. Desde aí se segue a pergunta: será que faz sentido falar de esperança se descartarmos, ao mesmo tempo, a possibilidade do que é esperado não se realizar?
O que acabamos de dizer fica mais claro quando consideramos a impossibilidade. O que ocorre quando um bem até então esperado se mostra impossível de ser alcançado? A resposta mais curta é: a esperança desaparece. Note-se, contudo, que a não realização de um bem esperado não significa que no seu lugar o que advém é necessariamente um vazio ou o desespero! A não consecução de um determinado bem esperado provoca em nós a ira. Por isso Santo Tomás classificava inicialmente a esperança entre as “paixões do irascível”. A não consecução daquele bem esperado termina na ira, não no desespero. O desespero tem lugar diante da total e definitiva impossibilidade da realização do Bem da esperança.
Enquanto estamos falando de um bem particular, a impossibilidade de consegui-lo se apresenta como um algo ruim. O desaparecimento da esperança em relação àquele bem não é, contudo, o desaparecimento da esperança como tal na pessoa. Não ser bem-sucedido numa avaliação ou competição não é motivo para desespero. Nossos fracassos têm grande importância para o nosso autoconhecimento, para o nosso desenvolvimento humano, nosso amadurecimento afetivo, nosso conhecimento das coisas. Não teríamos aprendido a andar de bicicleta se tivéssemos isso por impossível ou se tivéssemos desistido na nossa primeira queda. De modo semelhante, não descobriríamos nossas fortalezas, se nada aprendêssemos com nossas debilidades. E, por fim, não sabemos muito bem o que realmente podemos realizar, se não nos lançamos afetiva e efetivamente em prol de tal realização.
A ameaça da irrupção de um mal que faz desaparecer toda esperança calcada nas possibilidades da pessoa e das coisas e que causa (ou pode causar) o desespero de alguém tem a ver com o todo da pessoa, com o todo de sua vida, tem a ver com um mal impossível de ser evitado ou superado: a morte. Com efeito, a morte é a radical impossibilidade do pleno se dar bem, do viver em plenitude. Note-se que a morte não entra no campo do possível, mas da certeza. Somos plenamente conscientes de que vamos morrer, somos finitos; um dia nascemos, um dia morreremos como ocorre aos seres vivos em geral. Se há no ser humano alguma esperança de que ele não morrerá em definitivo, mas viverá plenamente, tal esperança não se encontra em suas próprias possibilidades espaciotemporais!
É aqui que as religiões entram e exercem um papel fundamental. Em geral, as religiões falam de esperança e, portanto, da possibilidade de se alcançar o bem definitivo, a vida plena. Felicidade, vida eterna, salvação são alguns dos termos mais utilizados no discurso religioso para expressar o objeto (bem) dessa esperança, cujo fundamento se encontra numa promessa. Para o fiel religioso das religiões abraâmicas a promessa da consecução do bem definitivo lhe advém desde um Outro, a quem chamamos “Deus”, o criador do mundo, do universo. A promessa divina recebe traços de nova criação: novo céu e nova terra, nova vida, nova criatura (cf. Is 65,17; Ap 21,5; 2Cor 5,17). Por anunciar um bem do campo da esperança, o prometido se circunscreve no campo do possível: o bem esperado é, então, possível pela ação/vontade do prometente divino.
Toda promessa anuncia um bem possível. Caso ela anunciasse um mal não seria promessa, mas ameaça; e caso não fosse tida por possível, seria considerada ilusão e não despertaria a esperança da pessoa. No entanto, é preciso considerar que um bem que certamente será dado não precisa ser prometido; assim como um bem que certamente virá não precisa ser esperado! O que isso significa? Ora, significa que a possibilidade de o fiel esperante alcançar ou receber o bem que lhe fora prometido não descarta, em princípio, a semelhante possibilidade de ele não o alcançar ou não o receber! Isso porque não está ausente a possibilidade de o fiel fechar seus ouvidos à promessa divina, virar as costas ao prometente, fechar-se sobre si mesmo, romper com a relação existencial prometente-esperante, perder-se.
É importante que percebamos o problema que surge quando o conteúdo da promessa, nas pregações, por exemplo, está mais calcado no mal a ser temido (chamado de condenação), do que no bem a ser esperado (chamado de salvação). A repercussão disso na vida e para a vida do fiel não é a mesma! Como poderia uma palavra de ameaça alimentar a esperança de alguém? Uma palavra de ameaça só alimenta o medo. Numa relação calcada no medo não há espaço para ações livres e gratuitas. O resultado é que o cumprimento da promessa divina fica condicionada à ideia de recompensa e esta, por sua vez, fica atrelada a ações ou conduta moral-religiosa da pessoa. O medo da reprovação, sob a forma de condenação, planta-se nela como necessidade de agradar a divindade. Esse tipo de comportamento religioso, tão primitivo, que justificava as mais diversas e por vezes horrendas formas de sacrifício, ainda continua muito presente no imaginário religioso.
A mensagem religiosa, como mensagem de esperança suscitada pela promessa divina do Bem definitivo, a salvação, precisa evitar esses dois extremos. Com efeito, tomar a mensagem divina de salvação como uma certeza absoluta traz consigo desdobramentos fundamentalistas e atitudes intransigentes para com os outros, para com aqueles e aquelas que não fazem parte do seleto “grupo dos salvos”. Por outro lado, insistir na mensagem da ameaça de condenação traz consigo atitudes paralisantes, recalcadas, resignadas, escravizantes. Em ambos os casos a linguagem da promessa e da esperança desparecem; a relação entre prometente e esperante não é mais livre.
No caso da compreensão cristã de salvação, isso é ainda mais profundo, pois o que o prometente divino, na sua liberdade, promete a mim e a ti não é outra coisa senão a si mesmo! Isso nos leva a concluir que o mais nobre bem prometido é aquele que não se distingue do próprio prometente; e, desde aí, que o mais nobre bem da esperança não diz respeito a alguma coisa, mas a alguém que é esperado!
Deste modo fica mais claro agora que a linguagem religiosa da promessa/esperança é a linguagem do amor, não do medo; e que salvação é relação de amor em definitivo em forma de vida, não de morte. Quem ama se promete livremente ao amado, e que quem espera, como amado, pode responder livremente à promessa de amor, amando; e amando ultrapassa os limites do cumprimento espaciotemporal de promessas e de esperanças em bens particulares e se abre ao eterno Bem!
Que tipo de mensagem de esperança você tem ouvido nas pregações em cultos, missas, celebrações e anúncios religiosos nas redes sociais? Que tipo de promessa divina está sendo anunciada para além de prosperidade, bem-estar econômico-financeiro e status social? Até que ponto a mensagem religiosa que toca a sua esperança de se dar bem (ser salvo) não está revestida ou transvestida de um dissimulado medo de se dar mal (ser condenado)?
Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE