Escombros, Lama, Solidariedade
Geraldo De Mori, SJ
“Nu, saí do ventre de minha mãe e nu, voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor tirou […]. Bendito seja o nome do Senhor!” (Jó 1,21a, 22).
Duas tragédias recentes, o terremoto do dia 6/02/2023, ocorrido entre a Turquia e a Síria, que matou mais de 40 mil pessoas, e as fortes chuvas que caíram sobre o litoral paulista, entre os dias 17 e 18/02/2023, vitimando mais de 40 pessoas, ocuparam nesse mês os noticiários do mundo e do Brasil. As duas tragédias, embora pertençam ao tipo de fenômeno que é denominado de fatalidade, pois, em grande parte, não pode ser previsto ou controlado, levantam uma série de questões, que contam com inúmeras respostas elaboradas ao longo da história pelos discursos religiosos, sapienciais e filosóficos, mas que devem, a cada vez que ocorrem, ser de novo revisitadas e repensadas.
O termo fatalidade, presente em muitas línguas para dizer o que é imprevisível, inevitável, atribuído ao destino, é em geral utilizado para falar de acontecimentos sobre os quais o ser humano não tem nenhum controle, como os eventos relacionados a cataclismas sísmicos, vulcânicos, climáticos. As sociedades pré-modernas associavam tais eventos a um deus mau, ao destino, tido como fatal, sobre o qual nem os deuses tinham domínio, ou, em certas tradições bíblicas, à ação do próprio Deus. De fato, vários desses eventos são vistos como queridos ou provocados por Deus como castigo ao seu povo ou aos povos que haviam, de alguma maneira, maltratado o povo eleito. É o que se percebe, por exemplo, no episódio do dilúvio, nas pragas do Egito, nas ameaças feitas por muitos profetas, algumas das quais, como a seca no tempo de Elias, enviadas por Deus. Esse imaginário pré-moderno, que atribui a Deus ou ao destino o bem e o mal, presente também em Israel, vigorava ainda no tempo de Jó, para o qual Deus era quem “dava” a bênção que produzia prosperidade ou o “castigo” que trazia perda e sofrimento.
No livro de Jó, porém, esse tipo de reflexão entra em crise, pois, segundo a teologia da aliança, ser fiel às exigências da Lei (Torá) deveria necessariamente produzir a retribuição em bênção. Todo mal era associado à infidelidade. Ora, Jó era justo e, no entanto, sofre todo tipo de percalços, levantando então a primeira pergunta mais radical sobre o porquê do sofrimento, ou seja, se Deus é bom, por que o mal existe no mundo?
Essa pergunta teve várias respostas na filosofia, como a de Epicuro, para o qual Deus, ou quer impedir o mal e não pode, ou pode e não quer, ou não quer e nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, é invejoso; se nem quer e nem pode, é invejoso e impotente; se pode e quer, o que é a única coisa compatível com ele, então de onde vem o mal? Por que Deus não o impede? Santo Agostinho, que inicialmente foi atraído pelo maniqueísmo, doutrina filosófica e religiosa que afirmava que o mal era provocado por uma divindade má, associada à matéria e ao corpo, contra a qual lutava a divindade boa, identificada ao espírito, afirma que o mal não possui ser, que tudo o que existe vem de Deus, que é bom. O mal seria então afastamento do bem, como mostra o relato da queda original de Gn 3, que deu origem à doutrina do pecado original, elaborada pelo próprio bispo de Hipona. Esse tipo de argumento resolve parte do problema, ou seja, o que atribui o mal às escolhas e decisões más do ser humano, mas não ao mal proveniente de catástrofes, sobre as quais o ser humano não tem domínio. A ideia de que elas seriam queridas ou enviadas por Deus, como aparece em algumas tradições teológicas do Antigo Testamento, se torna então cada vez mais problemática. De fato, como dizer que Deus, que criou tudo bom e belo, por amor, pode querer o mal e o sofrimento de suas criaturas, muitas delas, como no caso do terremoto da Turquia/Síria e das enchentes de São Paulo, totalmente inocentes?
O terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, no qual morreram mais de 90 mil pessoas, está na origem de uma das reflexões mais importantes sobre o porquê do mal. Uma delas, a do Leibniz, foi denominada de teodiceia. Segundo o filósofo alemão, Deus criou o melhor dos mundos possíveis. A existência do mal não é incompatível com um Deus bom. Existem três tipos de males no mundo: o mal metafísico, inerente à condição de criatura de tudo o que existe, como finito, não necessário, perecível; o mal físico, entendido como padecimento, desgosto, sofrimento, dor, mal-estar; o mal moral, associado à liberdade de escolha, que faz com que o mal seja resultado de ações más.
Nas duas tragédias que recentemente chamaram a atenção do mundo e do Brasil, além dos escombros e da lama sob os quais e nos quais se encontram ainda muitos corpos sem vida, é importante captar os milhões de gestos de compaixão e solidariedade que suscitaram. O bem, feito por tantos voluntários, seja através de socorristas, associações não governamentais, inciativas de governos, que se mobilizaram para ajudar as vítimas do terremoto na Turquia/Síria, seja através de tantas pessoas e organismos que têm se colocado à disposição das vítimas das enchentes em São Paulo, não elimina certamente o mal, a dor, a perda e o sofrimento de tantas pessoas que foram atingidas por essas catástrofes. Elas são uma expressão da capacidade que a humanidade ainda tem de se deixar afetar pela dor alheia. Numa cultura que não valoriza o humano enquanto saída de si para colocar-se ao serviço do outro, “banalizando” o sofrimento e a dor dos que são tidos como “descartados” do sistema, ver gente que deixa tudo para colocar-se ao serviço é uma prova de que ainda há no ser humano o poder da compaixão.
O caminho percorrido pela reflexão filosófica e teológica para dissociar Deus das tragédias que assolam o mundo, deve ser revisitado a cada vez que, de novo, um evento parecido acontece. A ciência e a tecnologia já avançaram muito e podem prever algumas dessas tragédias. Políticas públicas de proteção das populações vulneráveis necessitam ser efetivamente levadas mais a sério pelos governos, impedindo que as pessoas construam suas casas em zonas de risco, ou sendo mais rigorosas nas vistorias das obras dedicadas à moradia em grande escala. Nas duas tragédias houve um imponderável, que se pode associar à fatalidade ou ao que Leibniz identificou como mal metafísico e físico. Mas também houve negligências de autoridades competentes e irresponsabilidade de empresas e grupos encarregados pela construção de imóveis em zonas não seguras. Ter consciência disso pode ajudar muitas pessoas que ainda continuam associando a irrupção de tragédias de tais proporções a uma vontade de Deus ou a um castigo divino.
A compaixão, expressa em tantos gestos de solidariedade e generosidade, e a releitura da compreensão das catástrofes não como “vontade divina”, mas como algo que recorda a finitude humana e, em parte, sua capacidade de prevenir e diminuir o impacto do que é inevitável, podem, nesse início do tempo da quaresma, ser associadas com o “lembras que és pó, e ao pó voltarás”, uma das possibilidades a serem utilizadas na imposição das cinzas na cerimônia com a qual se inicia o tempo da quaresma. E o percurso todo, que conduz ao mistério pascal, coloca toda a Igreja junto àquele que, existindo em forma divina […] esvaziou-se e assumiu a forma de servo, tornando-se semelhante ao ser humano” (Fl 2,6-7), fazendo da cruz o lugar para pensar o mal e a dor.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE