Encarnação
“Porque a vida se manifestou, e nós a temos visto” (1Jo 1,2)
Muitas pessoas que creem estabelecem com frequência uma separação entre Deus e a vida, ou seja, Deus e vida são realidades dissociadas e, sobretudo, contrapostas. São muitos aqueles que veem na vida, com seus males, seus sofrimentos e suas contradições, a grande dificuldade para acreditar que existe um Deus infinitamente bom e misericordioso. E, em sentido contrário, outros veem em Deus o grande obstáculo para viver, desenvolver e desfrutar a vida em toda sua plenitude, pois o Deus que lhes é anunciado é o Deus que manda, proíbe, ameaça e castiga. Tem-se a impressão que, para viver a vida com todas as suas possibilidades e suas riquezas, é preciso prescindir de Deus.
No entanto, o Mistério da Encarnação deixa muito claro que a mediação entre os seres humanos e Deus é a vida, não a religião. A religião é uma expressão fundamental da vida e deve estar sempre a seu serviço. Como consequência, a religião é aceitável só na medida em que ajuda a potenciar e dignificar a vida, inclusive o prazer e a alegria de viver. Quando a religião é vivida de maneira a agredir à vida e à dignidade das pessoas, ela se desnaturaliza e se desumaniza, e acaba sendo uma ofensa ao Deus revelado por Jesus.
Somos de Deus
De fato, na contemplação da Encarnação (EE 101-109), o primeiro é a vida e a Trindade tomou partido em favor da vida, Ela “olha-escuta-observa” o mundo, onde são cometidos todo tipo de agressão contra a vida, gerando violência, dor e exclusão. Movida pela compaixão, a Trindade decide intervir no mundo – “façamos a redenção do gênero humano” (EE 107) – para aliviar o sofrimento humano, ativar a vida e abrir um horizonte de vida plena para toda a humanidade. O que aconteceu no mistério da Encarnação é algo surpreendente e cheio de novidade. Não só Deus ama radicalmente a sua criatura, senão que se abaixa e se faz um de nós em Jesus: a carne é digna de Deus, o mundo é digno de Deus, a Encarnação é a expressão mais profunda de que somos de Deus. Com isso, rompe-se o medo do corpo, o medo do humano, o medo do mundo, o medo de sentir e experimentar a condição humana, com sua grandeza e fragilidade.
A decisão da humanização de Jesus brota das entranhas do Deus Comunidade de amor: “ver e considerar as Três Pessoas divinas” (EE 106). Ao se revelar manancial e fonte de vida, não é mais possível crer que o Criador seja nosso rival, mas amigo. Não é possível mais aceitar que Ele seja insensível, mas sustento, que seja nossa ameaça, mas alívio, que seja nossa diminuição, mas plenitude, que seja nossa coação, mas fonte de liberdade. O Evangelho deslocou Deus, transferindo seu habitat do templo para o corpo daquele que está à beira da estrada, marginalizado. O excluído é doravante, a revelação da Sua presença. O motivo pelo qual o lugar de onde Deus fala é o excluído da vida é porque é desse lugar que Ele nos convoca para fazer estrada, viver o êxodo permanente, gerando-nos continuamente para a responsabilidade como pura gratuidade e generosidade.
No mistério da Encarnação, a Trindade não só se comove na distância, mas age, atua, dentro da nossa realidade. Ela não se faz de desentendida, nem de esquecida, não olha para o outro lado, Ela não permanece passiva frente a esta realidade ferida, não foge dela, pelo contrário, Ela se envolve encarnando-se continuamente e abrindo, sem cessar, novos espaços ao Reino de Vida. Inspirados pelo olhar da Trindade, precisamos contemplar nosso mundo fragmentado, vendo as diversidades que lutam e geram o sofrimento, a exclusão, a morte e os infernos. Esses espaços e fronteiras são cada vez mais extensos e problemáticos, mas, nas profundezas de todos esses “mundos que nos são estranhos” se revela a presença do Filho de Deus “novamente encarnado” (EE 109), pois tudo foi alcançado e redimido pelo amor encarnado de Deus.
O olhar inovador da Trindade
Portanto, a Trindade compassiva olha o mundo a partir de baixo, se comove com o sofrimento das vítimas e com a dor dos excluídos, atua introduzindo-se como corrente de vida na história. Ao mesmo tempo, nos convoca a acompanhá-la e trabalhar com Ela, convertendo-nos em canal por onde flui a vida. Somos convidados a incorporar-nos a esta corrente de compaixão que atravessa o mundo e a história, para ir iluminando novas realidades e instaurando doses mais elevadas de humanidade.
Texto Bíblico Lc 1, 26-38 / Jo 1,1-14 / 1Jo 1,1-10