Colher simplicidade no pé de jabuticaba
Eguimar Felício Chaveiro [Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás]
Certa vez ouvi uma história. Parece-me que ela foi narrada pelo psicanalista Paulo Gaudêncio num Café Filosófico produzido por uma TV.
A história é simples, como simples é a sua moral.
E a sua delicadeza. O neto havia se criado no centro da cidade de São Paulo.
Por isso, desde que abriu os olhos ao mundo, o que sempre via era prédios, veículos, gente apressada, cimento e plástico.
Um dia o avô o levou a uma chácara de amigos.
O passeio tinha um objetivo: chupar jabuticabas.
Quando o netinho se aproximou de um pé de jabuticaba, admirado e encantado, explodiu-se de contentamento.
O contentamento aumentou quando, com as mãozinhas enternecidas, ele mesmo colhia as jabuticabas, conduzindo-as à boca.
Com dentinhos afiados e voluptuosos estourava-as para o espetáculo de doçura melar os seus lábios e encher o avô de amor.
A experiência de o netinho colher jabuticaba no pé injetou no avô um dever de compreensão, uma nota de sabedoria e também uma página de descoberta.
A síntese do avô amoroso e intelectual veio telúrica: “não há que ter dúvidas, felicidade é colher jabuticaba no pé”.
Lembrei dessa história ao terminar de ler o livro “O medo à liberdade”, de Erich Fromm. Numa passagem enfática do livro, Fromm faz uma correlação entre o estilo de vida e a formação do caráter.
O seu argumento explicita que, “o estilo de vida, tal como demarcado para o indivíduo pela peculiaridade de um sistema econômico, torna-se o fator primordial na determinação de toda a estrutura de caráter, porquanto a necessidade imperiosa de conservação individual força-o a aceitar as condições em que tem de viver”.
O recado do Fromm não é complicado: ora, se o sujeito deseja um estilo de vida sofisticado, caro, complexo e, às vezes, soberbo, ele vai se adaptar ao sistema econômico posto. Certamente, vai tramar estratégias e pactos que o levem a uma condição adaptativa ao sistema.
Assim se posicionando entrega o caráter aos vaticínios daquilo que não controla e lhe é externo. Logo, a submissão do caráter ao sistema econômico, inapelavelmente o conduzirá à competição e à submissão ao próprio ego.
Sob o governo do ego perde a sua condição de ser, geralmente perde as suas raízes, o seu passado, a sua memória. Vende-se.
A tendência é, à frente, perder a tranquilidade e a paz. Competindo com o Outro e consigo mesmo, entregue à fadiga de uma conquista que não tem fim, o jeito acelerado do mundo adentra o seu diafragma, o seu pulmão, o seu olhar.
O estilo de vida passa a elaborar ou reelaborar o seu caráter e também a sua respiração.
A partir daí, corre-se o risco de o sujeito cair na vala bem delineada pela psicanalista Suely Rolnik: nessas condições o sujeito ganha o mundo, mas perde a si próprio.
Pode ser um vitorioso econômico, mas um derrotado espiritualmente.
Essa questão central – como não nos perdermos? – ensina Fromm: enfronha as vontades pessoais, as tomadas de decisão, as relações e o modo como nos colocamos diante do sistema econômico.
Para contornar razoavelmente essa questão, haveremos de observar que o essencial foi, é e será sempre simples.
A simplicidade é a esfera natural, como a terra e os passarinhos; o vento e a palmácea; a caminhada e o horizonte.
Da terra nos originamos – e para ela retornaremos.
Por conseguinte, todos estamos, na essência, nus, apesar das roupas, dos botões e das coroas de prata. E dos relógios de pulsos ritmando a entrega do organismo ao sistema social e econômico. Quem se afasta da simplicidade afasta-se de si mesmo e, em se afastando, se entrega ao ego, à imagem, às pompas de um rei triste e agônico.
Fora da simplicidade, o sujeito se contorce e se estranha porque desvinculado das raízes perde o desígnio de ser.
Há, portanto, uma dimensão ética na simplicidade. É mais fácil ser leal quando se é simples. É mais fácil também não se entregar à parafernália que nutre a aceleração, o estresse, a ansiedade.
Tudo isso tende a gerar angústia e a criar uma recorrente impotência. Fora o fato de haver uma obrigação de organizar a emoção, o desejo, os afetos e o pensamento no interior de um redemoinho intempestivo que, quase sempre, faz o sujeito desembocar numa convulsão simbólica.
Diante disso, não são poucos os sujeitos que atualmente, sob o desatino do estresse, procuram ambientes com canto de pássaros, com poentes luminosos e com gente de rosto simples. E que se diga: ser simples não é ser rude e tosco.
É ser capaz de marchar na vida sem se entregar aos chamamentos compulsivos e ególatras. É provável que muitos desses sujeitos nem saibam, mas estão querendo o descanso do ego e do sistema econômico que insuflam a sua egolatria. Muitos desejam o que na Psicologia ambiental é chamado “efeito floresta”.
Querem lembrar que da terra vieram e para a terra voltarão. Querem o frescor interno e externo. Talvez todos estejamos precisando colher simplicidade no pé de jabuticaba.