Centro Loyola de Fé

CARTAS PARA JESUS E A RUINZEIRA DE BODE

Algo me impressiona muito: a simples presença do Outro em
nossa esfera de relação é capaz de mobilizar um turbilhão de
sensações, de sentimentos e de memórias. Alguém chega
próximo e as nossas células começam a dançar ou darem pulos
difíceis de serem nomeados. Daí, que, sob a inspiração de
Merleau-Ponty, é apropriado dizer: todo gesto é a vida inteira.
Às vezes, esse jato de sentimentos e sensações nos perturba e nos
leva a um engasgo secreto e duro. É possível também, sob
condicionamentos e permutas alegres, festivos e confiáveis, nos
aproximarmos de alguém que amamos e tudo, numa rapidez
estonteante, se maravilhar como um vagalume no olhar de uma
criança. Há pessoas, cuja simples presença, nos fazem assinar
um pacto com a luz. De fato, há pessoas que nos enchem de
entusiasmo – e de vontade de viver. ……………………
Foi Cecília Meireles que escreveu numa de suas crônicas líricas:
não é possível alguém ser só. De alguma forma, cada um de nós
somos um Outro coletivo, desafiador, paradoxal, contraditório.
Irremediavelmente louco. O próprio corpo é uma matéria da
matéria do mundo, de sua história, de seus componentes
químicos e biológicos, de sua possibilidade de comunicação e
trocas. Por isso, é comum alguém chegar e dizer: “eu não sei o
que está acontecendo comigo”, ou proclamar: “estou com
ruinzeira de bode, mas não sei detectar a causa”.

Há os que fazem uma avaliação simples: “eu sou estranho, sou
estranho para mim mesmo”. A ruinzeira de bode pega a todos e
se mostra em vertigens súbitas, em nossas vontades
desorganizadas, na sede e na saudade de não sei o quê e,
inclusive, em sensações enevoadas na hora de dormir ou quando
se acorda. ………………. Pois é! ……………….
Um dia a minha mãe me conclamou a fazer um exame com uma
freira católica. A freira recomendada andava pelo Brasil
procedendo curas a partir de referências fitoterápicas ligadas à
psicologia espiritualista de escopo cristão.
Depois da insistência amorosa de minha mãe, com curiosidade,
adentrei a sala da freira. Antes, porém, fui convidado a tirar os
sapatos e as meias. De pés descalços e com os olhos arregalados,
fui recebido num tom solene e acolhedor.

Pediu-me que falasse de mim. Irreverente e humorada, a
freirinha simpática disse desacreditar que eu era um
professor universitário já que a minha postura corporal no
modo de sentar na cadeira era horrível. Nesse campo, o da
postura corporal, eu era analfabeto. Retesei o corpo, murchei
a barriga, organizei a respiração, estendi os braços e as mãos,
sob o seu ensinamento, silenciei-me e, depois, falei de meus
enroscos de vida. Desconfiada do meu discurso, depois de me
explicar que existem duas formas de febres, a febrona que é
do espírito, e a febrinha que é do corpo, disse-me que eu
estava gravemente enfebrecido. Sofria da febrona.
Então, recomendou-me que escrevesse cartas para Jesus.
Logo argumentou: “você escreve as cartas, diga tudo a Jesus,
tudo, sem nenhuma castração, Jesus vai ler, e depois você as
queima”. ………………. Pois é! ……………….

Apesar de gostar do método, eu não escrevi cartas para Jesus,
até porque, sob deliberação e com frequência, escrevo-as para
amigos e amigas. Algumas delas saem ao modo de um
movimento de escrita catártica formado no passado por um
grupo de pessoas, envolvendo Angela Barbosa, Lindomar
Tomé, Luiz Carlos Fadel, Aprígio Neto, André Toríbio,
Eleuzenira Menezes e outros e outras… ………………….
O movimento chamado PIOROCURA tinha um lema: nos
colocamos na vida – e na vida escrita – para curar; nos
curarmos para piorar. De tanto piorar, haveríamos de ser
curados. Desengasgar palavras castradas, pôr-se contra o
puritanismo negocial, ir no fundo dos sentimentos, procurar
uma luz de sabedoria nas dores, ferver a vida e tomar a
consciência da linguagem como ethos de libertação e de cura
eram os atributos centrais do Movimento, que, aliás, não
queria pódio, palácio, láureas, nem êxtases estéticos.
Pelo movimento, queríamos experimentar os dotes abertos do
dizer, pôr a vida no rascunho. Descermos ao poço fundo da
nossa própria experiência. Certamente havia em todos nós do
PIOROCURA a chama quente da poesia e da vontade de não
se render a qualquer tipo de opressão. …………….
Talvez tivéssemos o desejo de superar o medo e as bajulações.

Queríamos nos ferver no mundo e promover contágios
vibrantes no Outro. Sem que soubéssemos ao certo,
queríamos enfrentar a ruinzeira de bode, isso que palpita
fundo e ninguém sabe decifrar.
Da minha parte uma premissa é inegociável:
não podemos nunca descolar da realidade.

 

Eguimar Felício Chaveiro
[Doutor em Geografia Humana – Livre-docente
da UFG/Universidade Federal de Goiás]

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