A SOLIDEZ EM NOSSA VIDA – 23.08.2020
“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13)
Outra vez Jesus se retira com seus discípulos, agora para a região de Cesaréia de Filipe. Vão tratar assuntos que ultrapassam a problemática estritamente judaica; por isso, Mateus situa a cena em outro território, fora do espaço onde prevalece uma concepção do Messias estritamente nacionalista, para dar a entender que Jesus está aberto a outros povos.
De fato, Jesus entrou em conflito com a religião judaica e suas instituições (sinagoga, templo de Jerusalém).
Ele não foi sacerdote, nem funcionário do Templo, nem ostentou cargo algum relacionado com a religião; não foi um mestre da Lei; Jesus foi um leigo. Fugiu de todo poder, e se preocupou especialmente em cuidar das pessoas mais pobres e marginalizadas. Não se preocupou em fundar estritamente uma religião.
Cercou-se de pessoas, mulheres e homens, dispostos a continuar seu caminho, anunciando a mensagem do Reino de Deus, proclamando as bem-aventuranças como projeto humanizador, denunciando as opressões e injustiças e tornando realidade a salvação do Deus Pai e Mãe.
Este grupo de homens e mulheres acompanha Jesus em todas as partes, fazendo com Ele vida itinerante; mas também encontramos um grupo mais amplo de pessoas que, vivendo em suas casas e continuando em suas tarefas, são, no entanto, discípulos(as) de Jesus, apoiando-o, recebendo-o, seguindo-o. Todos eles formam o “movimento de Jesus”.
No evangelho deste domingo é a primeira vez que encontramos o termo “Igreja” para determinar a nova comunidade dos(as) seguidores(as) de Jesus. Mateus utiliza a palavra que na tradução dos setenta se emprega para designar a assembléia (“eklesia”). Evidentemente, Jesus não “instituiu” nenhuma “estrutura eclesial” propriamente dita: uma doutrina, uma liturgia, um governo… Jesus pôs em marcha um movimento de vida, que, através de muitas circunstâncias e vicissitude históricas, desembocará em comunidades organizadas e, muito mais tarde, em uma Igreja centralizada.
Jesus começou atuando sozinho, mas logo reuniu um grupo de discípulos em torno a si. Assim fizeram os grandes mestres na história da humanidade: Buda, Confúcio, Sócrates…
Professar nossa adesão à pessoa de Jesus de Nazaré, é entrar no movimento de vida iniciado por Ele, em torno à sua pessoa e à sua mensagem que cura e liberta de toda escravidão e dominação.
Também nós nos sentimos e queremos ser discípulos(as) de Jesus. É o Reino de Deus que nos congrega, que reforça vínculos e nos faz comunidade.
Seu movimento nos impulsiona e queremos impulsioná-lo. Move-nos a alegria, muitas vezes oculta, da mesma boa notícia e a esperança difícil do Reino de Deus.
Somos Igreja de Jesus. Mas, como é a “Igreja” que Jesus quis? É, antes de tudo, comunidade de pessoas, homens e mulheres que vão amadurecendo no seguimento d’Ele. E é comunidade totalmente aberta ao mundo, casa onde todos encontram lugar de acolhida e comunhão; uma “igreja em saída”.
O que é radicalmente contrário ao Evangelho da fraternidade é o sectarismo, o fanatismo, o fechamento diante da realidade desafiante e a discriminação de toda e qualquer pessoa.
Também hoje, Jesus dirige a cada um de nós a mesma pregunta que um dia fez aos seus discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Ele não nos pergunta para saber nossa resposta teológica sobre a identidade d’Ele, mas para que revisemos nossa relação com Ele. Que podemos lhe responder a partir de nossas comunidades? Somos seguidores(as) da pessoa de Jesus ou só seguidores(as) de uma determinada religião, doutrinas, normas, leis? Conhecemos cada vez melhor a Jesus, ou O fechamos em nossos velhos esquemas doutrinários de sempre? Somos comunidades vivas, interessadas em colocar Jesus no centro de nossas vidas e de nossas atividades, ou vivemos estancados na rotina e na mediocridade?
Diante da pergunta de Jesus – “E vós, quem dizeis que eu sou?” – o Evangelho deste domingo realça a resposta de Pedro e a missão que Jesus lhe confere. Pedro é instigado a entrar no fluxo do amor-serviço do Mestre; e isso não pode ser confundido com “transferência de poder”. Pior ainda é quando confundimos o “poder das chaves” com a “chave do poder”. Quem tem a chave tem o poder.
Nenhum exercício do poder é evangélico; muito menos o “poder religioso”. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Jesus não transfere “poder” a Pedro; reforça nele a liderança para o cuidado e o serviço aos outros. Nenhum ser humano é mais que outro, nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que Jesus admite é o serviço.
Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).
Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”. Sua autoridade é caminho para o serviço e a promoção da vida.
Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe.
Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir. Jesus tem autoridade porque ativa a autoria e a autonomia no outro; sua autoridade desperta o melhor que há em cada pessoa; ela não cria dependência e nem tira do outro a capacidade de dar direção à sua própria vida.
Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, decide por ele… O poder alimenta dependência e submissão.
O olhar profundo de Jesus levará Pedro também a se conectar com seu ser mais profundo (aquilo que é mais sólido), com sua realidade mais verdadeira, com os desejos de seu coração ainda não configurados pelo amor. Quando Jesus fixa o olhar em Simão, seus olhos descobrem no interior deste homem um nome escondido (Pedro), e ao pronunciá-lo, possibilita-lhe despertar essa vocação já inscrita no mais profundo de seu ser. Aqui começa para Pedro uma nova história, que já não será narrada por ele sozinho, mas em comunhão com Jesus, entre idas e vindas, fragilidades e fortalezas, tentativas no amor e fracassos…
Nas itinerâncias de Jesus, Pedro foi convidado a “fazer caminho com Ele”, começando pelo próprio interior; impactado pela ternura cuidadosa de Jesus em sua vida, Pedro irá sendo conduzido a descobrir-se, a ser cada vez mais consciente de si mesmo e adentrar-se por rotas novas de liberdade, de vida, de entrega…
Mateus faz um sugestivo jogo de palavras entre dois nomes gregos comuns: “petros” (pedra) e “petra” (rocha). “Petros” tem o significado de pedra comum, pedregulho, sem consistência; “petra”, por sua vez, significa rocha, pedra sólida sobre a qual se assenta um edifício. “Tu és petros e sobre esta petra…”
Aparece, então, a comparação-oposição entre a fragilidade e a pequenez da pedra frente à segurança e robustez da rocha. Pedro é “pedra” em sua fragilidade humana, mas é “rocha” em sua manifestação de fé. A rocha não é a pessoa de Pedro, mas a fé de Pedro. Sobre essa rocha-fé de Pedro Jesus deseja edificar sua comunidade de seguidores.
Nesse sentido, o Evangelho de hoje também nos ajuda a ler nossa vida. Ali afirma-se também a nossa identidade; e a nossa identidade se revela por aquilo que é sólido, consistente… no nosso interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos…).
Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal. Sobre essa “rocha” construímos nossa maneira de seguir a Jesus.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: Devemos aprender a olhar a vida e as pessoas como Jesus as olhava, ou seja, um olhar capaz de vislumbrar o mais humano e mais divino em cada um(a), um olhar que faz emergir a rocha consistente, sobre a qual construir um estilo de vida, à maneira de Jesus.
– Ao sentir-se olhado por Jesus, como Pedro, você é capaz de vislumbrar outros dons, recursos, capacidades… do seu próprio interior e que darão a solidez à sua própria vida? O que é “petra” no seu interior?
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ