A ressaca
Eguimar Felício Chaveiro
[Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás]
Tenho defendido, a partir de uma interlocução com Altair Sales Barbosa, cientista supremo do Cerrado, que um dos principais arquétipos do povo goiano e cerratense é a vida em bando. Antes de tomar consciência dessa insígnia – o bando como forma de vida –, espontânea e corriqueiramente a minha trajetória vital foi e é cursada no bando. Quem fermenta a sua pele, o seu coração e as suas pelejas no grupo – e em grupos – possui o privilégio de estar sempre em aprendizagem. Viver em bando é abrir-se às trocas diárias. E se compor mediante essas trocas como alguém que aprende sem saber que está aprendendo e talvez ensine sem amarrar gravatas para o ato. Cultivar a aprendizagem em conversas soltas, podemos afirmar, é uma das maiores marcas das latitudes tropicais.
Pois bem! … Ao participar de uma defesa de doutoramento como arguidora, a minha amiga, a professora Ana Carolina de Oliveira Marques (Caroll) / UFPB [Universidade Federal da Paraíba], antevendo o caminho posterior do doutorando, avisou: “cuidado, com a ressaca do tema!”. Citando a sua própria experiência, Caroll disse que a sua vida intelectual é marcada por várias ressacas. Com intensidade, durante seus trabalhos de pesquisa, lançava a cara nos temas, procurava as suas últimas fronteiras, abria os olhos ao continente de suas conexões com outros do mundo, mas ao findar os trabalhos, nem mais queria vê-los. Eis a ressaca do tema. ……….
A minha amiga Luanna Borges, professora de jornalismo literário – FIC-UFG [Faculdade de Informação e Comunidade-Universidade Federal de Goiás] – um dia me ligou pela manhã. Estava eufórica porque havia descoberto o enigma de si e o seu grande problema. As palavras são dela: “eu não sei viver”. Com ênfase emendou: “eu tenho um problema, um problemão, eu não sei viver”. Na tentativa de justificar a descoberta de seu enigma foi tomando nota que não há como saber viver; não há escolas de vida e para a vida. A vida se vive, aberto ou fechado, apaixonadamente ou sob eterna ressaca. Aliás, o meu amigo Rodrigo Emídio – IESA/UFG [Instituto de Estudos Socioambientais, da Universidade Federal de Goiás] – depois de ficar três dias bebendo um goró com amigos e amigas, me ligou para dizer que estava com ressaca. Me explicou logo que a pior das ressacas é a da vida.
Nesse tipo ele está bem no campeonato. Aliás, clariceanamente, Luanna Borges, com timbre juvenil, às vezes me diz: “estou cansada de viver, viver me cansa demais”. O nosso colóquio sempre termina com enormes gargalhadas. Um dia, o meu amigo Donizette Soares me disse que estava com preguiça de viver.
Tudo bem, disse ele, “pescar é muito bom”. Disse-lhe que ele estava com ressaca, apenas isso. É só pescar! Perto disso, o meu amigo Ricardo Coró repete com boa frequência: “a felicidade, mesmo desperene e intermitente, é um acontecimento espacial, só acontece no quintal da avó. O quintal da avó, esse infinito território de memórias”. Esse tema – a ressaca – não tem merecido, talvez, a atenção de professores e professoras de inglês; nem de estadistas entronados nos seus palácios protegidos de seguranças armados; e inclusive de psicanalistas que desenvolvem terapias para minimizar ansiedade de cães, ou de mães amorosas flechadas pelo medo de seus filhos serem alvos de psicopatas e fascistas.
É provável que haja poucas teses de doutoramento nos programas de pós-graduação em medicina, em história das guerras e em sociologia de suicidas sobre a ressaca.
Talvez seja um tema de pouca aventura dos literatos oficiais e dos técnicos de time de futebol que coordenam as linhas avançadas e recuadas do jogo tático empedernido de arte. Os professores de Teoria e Método atacam de Foucault, menos de ressaca. Estamos certos: há, no ser humano, a premente necessidade de nomear as coisas a partir dos signos e de seus efeitos simbólicos. Ao nomear as coisas e os eventos supõe-se organizar o bailado tenso do mundo no pensamento e, assim, discernir a relação constante que se tem com elas e com outros seres. Porém, nunca o que se diz de uma coisa chega ao fim. Por isso, há que dizê-las e refazer o dito sempre. Sempre.