A NOITE SÓ COMEÇA DEPOIS DO CINEMA
Eguimar Felício Chaveiro
[Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás]
Um dia. Um dia qualquer. Cedo, ainda com os olhos embaçados, se vê aturdido com o que terá que fazer. Vai para o café
no automático, até o sapato caminha anestesiado. Com pressa, suga o precioso líquido mastigando o pão com os lábios suspensos.
Nem se importa com o farelo do pão esparramado na camisa polo. Mastigar – pensa com rapidez – poderia ser a melhor metáfora
para a sua indignação calada. Escova os dentes e esquece de olhar o rosto no espelho.
Quando pega a chave da ignição, atenta-se que não penteou os cabelos.
Passa as mãos nos seus fachos ralos com a mesma pressa que organiza o retrovisor.
No traslado da casa para o escritório, depois de passar a mão na cabeça procurando um alívio, perscruta em forma de pergunta:
“como vou enfrentar o chefe?” A pergunta revolve na cabeça e dela surge o achado matutino:
a distância entre a raiva e a prudência é a mesma que há entre a omissão e a coragem.
Elabora uma síntese torta: o chefe sempre está com os nervos à flor da mercadoria. E essa, a mercadoria, comanda o olhar,
o desejo, a moradia, a engrenagem que destrói rios, aquíferos, florestas, animais, almas humanas.
Interroga novamente: “como vou enfrentar o chefe à flor de mercadoria?”.
Liga o carro, retesa o corpo, pisa no acelerador… O trânsito tem um céu próprio. Ele prova que o inferno é feito de buzinas
e pressa. Procura se acalmar, aciona o botão do rádio. Neste exato momento o locutor, com voz severa e paramentada, salienta:
“a guerra continua”. Essa frase, óbvia e despretensiosa, lhe pega pelas calças, pelos cabelos, pelo nariz, pela boca…
Alguma coisa severa abre alas em seu pensamento que, no momento, viaja fundo. A guerra é isso: um documento
de que a indústria armamentista, as disputas religiosas, as estratégias econômicas, as dissimulações das instituições
que comandam o mundo, servem de Deus para proclamarem a morte como recurso de poder. Definiu para si:
“a minha consciência não pode ficar fora dessa batalha”. Incha o peito e diz “eu estou na guerra!”
Organiza a respiração reconhecendo que ela estava caminhando no ritmo do trânsito. Põe as mãos no queixo rastelando,
com os dedos da mão direita, o fiapo da barba mal cozida. À frente, uma moça galopa, a pé, com livros debaixo do braço,
certamente está atrasada para entrar na escola. Vai dizer – pensou – que sofre de insônia e trepidação nervosa aos domingos.
Um garoto, espaventado e torto, equilibra a mochila nas costas. Um senhor, com cabelos pintados e nariz de navio,
embora lento, anda com passos ressabiados com a bíblia exposta. Está teso. Cristo é a sua condecoração.
Olha o relógio no automático e percebe que não assimilou o horário. Olha novamente. Vai chegar.
A imagem do chefe à flor de mercadoria, como um macarrão instantâneo, se lhe chega espumando as ventas.
Sente raiva e dor. Sente-se indefeso e só. Recalcula a imagem: pensa na esposa, nos filhos, nas férias. Há uns probleminhas,
ou problemões: a filha mais nova não sai do quarto; o filho do meio é alérgico a tudo; a mais velha, essa sim,
quer ser atriz de teatro – e até sabe falar a palavra Shakespeare.
A esposa cede ao comum e no comum, pátria diária, lhe recebe depois do trabalho.
Ajuíza que é necessário suportar o momento e outros, até que lhe surja uma coragem para indignar-se, para enfrentar,
para dedicar-se a si, enfim, para ser solidário consigo mesmo. Aliás, de súbito, lembra o que havia escutado há muito tempo
na sala do dentista: “quem não se importa consigo dissimula qualquer bondade com o outro”.
A imagem da guerra retorna como um vulto viril: “é possível haver bondade neste mundo?”
Depois da pergunta, encosta o carro no pátio reservado aos trabalhadores da repartição.
Desliga o rádio, resfolega-se, olha o horizonte da manhã proletária. Resolve enfrentar o chefe com nervos à flor de mercadoria,
o enfrentará com graça. Já decidiu: à noite, depois da janta, convidará toda a família para ver “os tempos modernos”, de Chaplin.
A assinatura é simples: a noite só começa depois do cinema.
OBS. Os textos expressam a opinião de seus autores, não necessariamente coincidente com a dos coordenadores do Blog e dos participantes do Fórum Intersindical. A cada reunião ordinária, os textos da Coluna Opinião do mês são debatidos, suscitando divergências e provocando reflexões, na perspectiva de uma arena democrática, criativa e coletiva de encontros de ideias em prol da saúde dos trabalhadores.