Centro Loyola de Fé

A montanha interior

Traduzido por Viviane Sales M. de S.

A montanha atraente

Caminhantes, montanhistas e alpinistas exploram as alturas para ver do alto o que não é possível decifrar das planícies. Adrenalina pura ou apenas a vontade de caminhar sobre o fascinante mundo das alturas, a montanha despertou, desde sempre, a profundidade e a espiritualidade do ser humano, daí que a expressão “montanha interior” seja tão acertada, pois remete-nos para uma impossibilidade de escala: como cabe uma montanha no nosso interior? Pensar nela aponta para o alto. O seu topo relaciona-se com as distantes nuvens, atravessando-as para lugares que sempre alimentaram o imaginário de várias culturas religiosas ao longo dos tempos. Nos textos bíblicos, são inúmeras as referências à montanha, mas sempre nessa ótica de lugar geográfico elevado que nos permite subir para uma relação mais próxima com o divino.

A montanha interior v. 1

Inicialmente, importa esclarecer que a expressão levanta questões sobre as quais não há uma resposta fácil. Sabe-se, contudo, quem a utilizou pela primeira vez: Santo Atanásio de Alexandria. Em pleno século IV, no seu livro Vida e Conduta de Santo Antão, sendo referida deste modo: «Antão instala-se no topo do monte Colzum, também chamado de montanha interior, e considera-o a sua morada.» Ou seja, o topo do monte coincide com o lugar interior da montanha.

Esta noção ambígua de que o lugar mais interior de uma montanha está no seu topo abala as estruturas do nosso raciocínio. É uma incompatibilidade que a razão não consegue explicar. Talvez só os montanhistas (qual a verdadeira razão que os leva a escalar a montanha?), compreendam a plenitude da expressão. Alcançar o topo é mergulhar no interior profundo da montanha. Incrível…

Voltando às palavras de Atanásio, referia-se a Antão como ávido de solidão, «temendo orgulhar-se por causa das obras que o Senhor fazia por meio dele», coloca-se sempre a caminho, em busca de um lugar isolado, a sua montanha interior.

Não se pretendendo encontrar a origem do fascínio pela montanha, o que nos levaria a mergulhar nos textos do antigo Oriente Médio, salienta-se apenas qual a principal referência de Antão para a sua vida asceta; Jesus de Nazaré: «Depois de despedir as multidões, subiu ao monte a sós para rezar. Ao cair da tarde, Ele estava ali sozinho.» (Mt 14, 23).

A montanha de outros

Peter e Traudl Markgraf, nascidos na Alemanha em meados dos anos vinte do século passado, emigraram para o Canadá já depois da segunda grande guerra. Nos anos setenta, mudaram-se de Montreal para a Sunshine Coast, British Columbia, zona de montanhas e lagos onde, durante dez anos, inspirados pela paisagem da montanha que os rodeava, produziram várias séries de serigrafias.

Embora este casal artista não tenha conquistado ainda o seu lugar na história da arte (nem sequer sua entrada na Wikipédia), as séries produzidas nessa década tiveram sucesso imediato.

A perspectiva atmosférica é evidente (Fig. 1): o primeiro plano mais definido e contrastado versus um plano de fundo mais esbatido, desfocado, misterioso. Pelo meio, cores, reflexos, nuances.

Dando crédito ao desejo de Santo Antão, o cume que se vê no trabalho do casal Markgraf é um lugar silencioso, isolado, ao alcance apenas de alguns, o lugar da montanha interior. Esta perspectiva coloca-nos imediatamente a caminho, a querer desvendar o mistério e focar aquele horizonte que revela e esconde simultaneamente.

Olhando para os exemplos de artistas consagrados e o modo como se relacionaram e pintaram a montanha, destacam-se dois: Paul Cézanne e Leonardo da Vinci.

Como desenhar a experiência da montanha? Não se trata apenas de desenhar/pintar uma montanha, mas o modo íntimo e interior que o grande volume de minerais, rochas, vegetação, com uma escala esmagadora e exterior, se pode trazer para um plano bidimensional em registro desenhado.

Paul Cézanne deixou um legado de vinte e nove telas sobre o monte Sainte-Victoire, ao longo de quase quarenta anos (1867-1906), mostrando como se deixou seduzir pela atração da montanha.

O debate sobre a persistência de Cézanne em torno do mesmo tema é extenso e não será aqui abordado, mas ressalta, nestes dois exemplos separados por quase quarenta anos (Figuras 2 e 3), que a sua preocupação não era técnica ou mimética, mas antes uma busca pela essência da montanha. Percebe-se como a sua relação com a montanha mudou. A técnica ajuda a mostrar isso, mas é o seu modo de olhar e de sintetizar as formas que se alterou…

Se Cézanne se debruçava repetidamente sobre o mesmo tópico em busca da sua essência, já no exemplo de Leonardo da Vinci (Fig. 4), temos um esboço rápido e único do mestre do Renascimento. A sua intenção era clara: ver e desenhar uma tempestade vista de longe, ou seja, de fora, como espectador. Subiu os Alpes milaneses com 54 anos com esse objetivo, mas não ficou indiferente ao que a montanha ia lhe mostrando. Nas páginas desse seu caderno, desenhou conchas e outros vestígios marítimos, ficando claro que não só a chegada ao cume era importante para ver a tempestade, mas também o processo da subida se tornara valioso, despertando o seu olhar para algo que ele não imaginara: o nível do mar tinha estado ali.

A montanha de Garda

Como experimentar então a montanha através do desenho? Coloquei-me a caminho e parti para o norte da Itália, mais concretamente as montanhas situadas junto ao lago de Garda. Hospedei-me e deixei-me desligar de Portugal, da minha língua, cultura, comida, paisagem. Partir tem essa força do desapego às raízes.

Comecei a desenhar. Primeiro numa cota mais baixa, ao nível do mar. O impacto da montanha era monstruoso (Fig. 5). A escala absolutamente gigante. Esmagava com toda a sua imponência e fazia-me sentir pequeno, ínfimo, demasiado até…

O exercício a que me propunha era subir a montanha o máximo que conseguisse e, ali chegado, olhar o horizonte para interpretar o que aquela área desfocada bem longe poderia ter para comunicar. A metáfora era essa exatamente a de tentar focar o que se vê mal. Algo que existe e se consegue ver, mas está longe, quase inalcançável, ficando, ao mesmo tempo, pedindo foco e concretização.

Acabei por não subir ao cume mais alto. A vista era já surpreendente e não havia razões para não começar a desenhar. O processo de desenho é tão lento que reparei em algo que não tinha sido possível ver antes: os dois lados da montanha tinham texturas completamente diferentes (Fig. 6). O da esquerda é mais texturado, rugoso, rochoso, enquanto o do lado direito é suave e esguio. Assim de repente, esse contraste mostrava-se como a metáfora perfeita do meu tempo presente. O lado direito e suave representava o período de investigação no doutorado, enquanto o esquerdo representava o momento anterior. Olhando em frente, o horizonte desfocado parecia querer dizer-me que o que me espera no futuro será uma mistura desses dois momentos, ou seja, não sendo possível ficar em sabática para sempre, a vida dificilmente voltará a ser como antes.

A montanha interior v. 2

Depois de subir à montanha e de olhá-la de frente, o sentimento mudou. A sensação de escala gigante que nos esmaga desapareceu. Não havia lugar a desconforto, mas a um diálogo de igual para igual, com a mesma linguagem, com entendimento, sem imposições ou submissões.

Com um início de diálogo estabelecido através do desenho anterior, tinha de continuar a explorar esta nova forma de expressão e entendimento, pelo que comecei a fazer pequenos estudos dos cumes (Fig. 7). Procurava entendê-los e às suas nuances através da expressão gráfica. A cada olhar e a cada linha traçada no papel, a montanha tornava-se mais próxima, mais amiga, mais íntima, mais dialogante. O aparente isolamento sonoro cria, através de um silêncio que é mais uma escuta ativa ou uma espera silenciosa por outra tipologia de comunicação, um mergulho interior de diálogo próprio e íntimo com a paisagem.

Voltando à expressão atribuída a Santo Antão, penso que seria esta a sua montanha interior. Não a exterior que tentamos que caiba aqui dentro, mas a que desperta em nós a montanha adormecida, acordando-a para fazer estremecer áreas inexploradas, falar com palavras desconhecidas, comunicar de modos inimagináveis, transcender-se não porque se está numa cota superior a tocar as nuvens, mas porque a cota interior se agigantou, levantou, ergueu-se para territórios íntimos ainda inexplorados.

Mário Linhares
Imagem de topo: Mário Linhares | D.R.
Publicado em 17.02.2020

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