A borboleta azul
Eguimar Felício Chaveiro
[Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás]
Alguém, por motivos singulares, enredado na cultura de seu tempo, resolve escrever. Resolve escrever ficção. Deseja ser escritor mesmo que isso lhe custe a substituição do bar pela biblioteca e um esforço dobrado para promover o escrutínio das circunstâncias e da experiência humana tornando-se, ele próprio, objeto desse subsolo fundo: a alma humana. Quer ser escritor porque quer se libertar, se situar, e que, no mesmo golpe, compreender o que parece ruidoso e informe: o que está fora e este fora que está dentro; o que está dentro e grita como uma criança nascendo para fora. Então se prepara: ajunta notas e premissas.
Vai aos grandes do ramo e pede ajuda. Logo descobre que a ficção não é mentira. Com certa pompa diz com garbo indubitável: a ficção não é mentira, é outra forma de dizer a verdade, então pede socorro às autoridades. Vai de Aristóteles: o logos inclui o ethos e o ethos clama pelo pathos. Resolve explicar o que vem do filósofo grego: o saber inclui a ética e a cultura; a ética e a cultura chamam a paixão e a sensibilidade. Entretanto, a explicação não convence a si mesmo. E por não se sentir convencido, segue argumentando para convencer os outros. Proclama que a verdade não é um dado a priori; nem cifras estatísticas destiladas em tabelas e gráficos; muito menos o ritual de informações contida na escritura de um latifúndio cuja origem remonta às sesmarias.
Considera que deve ser simples. Para cumprir o mandamento da simplicidade apela para um discurso de calibre baixo replicando a famosa frase: “a verdade não tem dono”. Se não tem dono, ela depende do ângulo dos interesses dos sujeitos que discursam; da perspectiva moral e política. É disputada filosoficamente como se disputa um beijo na meia-noite no palitinho. Desse beijo pode haver a mudança de toda a seta da vida. O escritor, esse pretenso escritor, sabe que as fábulas, as novelas, os romances, os contos, a autobiografia, a autoficção e, inclusive, as memórias e até os testemunhos são realidades ficcionais. Dependem do empreendimento da criação. Mas a criação surge de um mundo concreto e para ele se volta. Daí que a versão dos fatos, o enleio da narrativa, o que decide pôr no papel e o que escapa transladam na transformação da intenção à linguagem. E a linguagem vem do mundo para fundá-lo pelo mágico ato de nomear e significar. Nada escapa, se humano é, da imaginação, do ponto de vista, da defesa de si mesmo contando história de pescarias. Mas o escritor quer a verdade, a verdade humana, o que não está facilmente dado e mencionado.
Com vocação professoral, profere a síntese que chega com cores: dizer o mundo, em qualquer condição, gênero e estilo, é parte da construção do próprio mundo. O sujeito que enuncia e narra se constitui.
Está tudo certo no solilóquio até que, com a folha em branco sobre a mesa, com a caneta próxima e quente, parte para construir a peça. Porém, sem aviso e sem encomenda, chega rápida uma borboleta azul e pousa na folha em branco. O escritor quer a verdade.
A verdade chegou: a borboleta azul. Imediatamente, esse fato inusitado abre um continente de conexões na cabeça do pretenso escritor. O bordado das asas da borboleta azul; a simetria cromática junto à sua forma; a delicadeza animal; e a dimensão plástica de sua pose no papel, formam uma espécie de aquarela que voa. A borboleta é uma aquarela que voa – disse o poeta. Ali no papel branco a borboleta azul rouba a atenção do pretenso escritor lhe fazendo promover interrogações: será essa a borboleta da China que, mesmo distante, implica no imenso repertório de trocas de matéria e energia no planeta inteiro? A borboleta azul sacode a cabeça do escritor sem causar uma filigrana de movimento no papel. Ela, feita de cores, cheiro, forma, tons, gens, no circuito de vida de que participa, estabelece relações com o mundo natural, químico, físico, atmosférico. Mas, radiante e espetacular, não está só no mundo. Com ela juntam-se aproximadamente 8,7 milhões de espécies vivas, em que apenas 1,75 milhões foram catalogadas. Borboletas e outros tantos animais, plantas, seres humanos, para viverem disputam e constroem territórios. Quase sempre são pressionados e desafiados. Para sobreviverem desenvolvem trocas e cooperações procurando sempre ambientes adequados para respirar. O meu amigo Nilson Jaime, digníssimo borboletólogo de Goiás, me ensinou que a borboleta azul, proveniente da região neotropical, principalmente da Amazônia e da Mata Atlântica, pertence ao gênero morpho. A sua coloração azul se deve às escamas que são iridescentes gerando a impressão que são metálicas. A sua cor azul é um artifício de atração sexual, especialmente pelo galanteio do macho no trabalho de seduzir a fêmea. As suas asas são formadas por escamas, infinitas escamas. Depois de viverem em situação de crisálida e pupa, hibernadas na maior parte da sua vida, desenvolvem o momento final de sua vida já com asas. Pois bem!
A borboleta azul rapidamente abre as asas e sai da folha em branco. Mas deixa para o escritor – isso é uma nota de Ítalo Calvino – muitas lições. Diante do singelo fato, o escritor se contorce: “como colocar no papel o meu sentimento?” Como tudo, o seu desafio é linguístico, pois a verdade o é impetrada pelo que existe e pelo que se inventa. Reconhecer que se está no mundo e o que se pode fazer é lutar pela vida a partir de um esquema de valor, devolve ao escritor o instante de criação. Com amorosidade humboldtiana o escritor reconhece a sua condição cósmica. E lá longe a borboleta azul voa. Voa!