Centro Loyola de Fé

A BOCA ARMADA

Eguimar Felício Chaveiro
[Doutor em Geografia Humana – Livre-docente
da UFG/Universidade Federal de Goiás]

Outro dia, na manhã seca de Goiânia, fiz um pedido de pão com ovo
na padaria próxima à minha casa. A moça que me atendeu, de rosto
simples e olhar distante, ansiosa e rarefeita, me recebeu de forma
desconcentrada. Repeti o pedido, ao que ela, automática e enfurecida,
estatelou os olhos e com sina de raiva no rosto, ergueu-me a voz.
Um frentista de posto de gasolina repetiu, na mesma semana, o tom
reativo de agressividade. Ele, um senhor de pouco mais de 40 anos de
idade, despenteado e com as mãos cerradas, numa fonética ríspida e
volumosa, ao invés de me dar o bom dia universal, me recebeu com
fúria e impaciência: “- o que o senhor quer, diga logo!”. Uma amiga
de trabalho me narrou que na universidade a senha do grito ecoa
corriqueiramente. Em conversa com amigos e amigas sobre esses
tristes episódios, recebi deles pronunciamentos que relatam
semelhantes atitudes em várias situações e locais. Percebi, então, que
o Brasil está com a boca armada. Não só crescem no país os clubes de
tiros, a venda de armas, o feminicídio, mas os revólveres verbais,
inclusive na boca de trabalhadores e trabalhadoras simples,
oprimidos, desalentados. E também na boca de gente que de maneira
dissimulada se pronuncia contra a violência, mas não faz nada contra
a desigualdade social, contra a fome, contra os monopólios.
Aliás, jorram atualmente, oriundas do pensamento crítico,
considerações que revelam a intoxicação do espaço público, da
comunicação e da banalização da ética a partir da mediação das redes
moduláveis que, conforme destacou Eugênio Bucci (Superindústria do
Imaginário), promovem a extração do olhar transformando-o em
mercadoria. A exposição narcísica de fotos e de mensagens
aparentemente inocentes nas plataformas cumprem um papel:
efetivar a maior monopolização de capitais da história humana.
Tenho pensado, a partir de leituras e da experiência exercida na rua,
nas padarias e no trabalho, que o bolsonarismo autorizou e motivou o que já constava na alma brasileira: a violência. Essa acontece de
muitas formas, inclusive com olhares cheios de rifles, com ameaças
gestuais, com reações intrépidas de pares. Com revólveres verbais.
Como se sabe, os fracos usam a violência porque não suportam a
democracia. Os fracos não suportam o diálogo.
O grito da moça da padaria direcionado a mim, me compeliu a
enfrentá-lo fora do seu padrão. Eu o enfrentei com silêncio e com o
rosto bom. Não queria ceder ao seu código. Mas depois saí triste,
consciente que a sua boca armada, como a do frentista, tem uma
origem histórica genética: falava por ela – e por ele, os coronéis do
açúcar; os escravocratas do império; os oligarcas grileiros;

os exterminadores de etnias indígenas; os latifundiários que assolam
rios, contaminam o ar, envenenam alimentos. Foi fácil perceber
também que a trabalhadora da padaria e o frentista – e tantos outros
e outras – que, possivelmente, ganham menos de um salário mínimo
mensal ou apenas um salário mínimo, certamente com deficiência na
formação escolar, têm identificação com o seu algoz histórico.
Essa identificação, autorizada e atualizada no atual contexto, requer
uma leitura que deve ultrapassar o comando bolsonarista.

Não foi ele que inventou a violência. Ela é um extrato fundo do país.
Ele apenas a replica, cumprindo um papel decisivo: o de pactuar, na
atualidade, com as forças atávicas do país para que a subjetividade
castradora e a desigualdade social se perpetuem.
O grito e a vermelhidão raivosa dos meus personagens, além de se
efetivarem pela autorização inconsciente a que se reporta Adorno
lendo Freud no livro “A Formação da Personalidade Autoritária”,
dizem respeito à cultura brasileira, ou às culturas brasileiras, como
mencionou o mestre Alfredo Bosi. Esse é o problema mais grave, pois
o belicismo transformado em cultura, e a cultura codificada pela
violência, normalizam o autoritarismo e o faz correr nas veias do
tecido social inteiro. Daí, surge a emoção cega, a arrogância da alma.
A desconfiança no Outro. Ceder-se à psiquê autoritária e se colocar
na dependência de um pai mitológico, a partir de uma referência
simbólica vulnerável, é algo que tem força de permanência.
Erich Fromm, no livro “O medo à liberdade”, destaca que quando o
fascismo galgou o poder, “não se acreditava que o homem pudesse
exibir aquelas propensões para o mal, aquela ânsia de poder, o
desprezo pelo ser humano”.

Não se acreditava também que gente
simples, pessoas comuns, trabalhadores e trabalhadoras, fossem
capazes de se voltarem contra os seus com tanta maldade, raiva,
sentimento de revanche. Para quem não quer se entregar aos
revólveres de aço e aos revólveres verbais o desafio é grande, pois
está posto no país o clima bélico, a banalização do Outro, ou o que o
professor Nilton José dos Reis Rocha (Faculdade de Informação e
Comunicação, da Universidade Federal de Goiás), denomina
“envenenamento simbólico”. Aliás, o mesmo professor, pessoa terna,
criativa, lutadora e amorosa, num diálogo com Camus, nos sugeriu:
“dar nome errado às coisas aumenta a desgraça do mundo”.
A despeito da beligerância estampada nas ruas e nas condutas das
pessoas ao modo da reatividade agressiva, inclusive em alguns
segmentos da esquerda (pelo menos a acadêmica), surge o grande
desafio: não deixar o coração ser roubado. A congruência nefasta
entre o armamento efetivo e as armas nas bocas das pessoas exige
uma atenção com o Outro, com o país e conosco, pois haveremos de
praticar outros modos de dizer e outros modos de relacionar.
Haveremos de dar o nome certo às nossas intenções para a desgraça
do mundo não aumentar. Ser coadjuvante da desgraça custa a perda
do coração. Para os que querem a ternura, a solidariedade e amor, é necessário também desarmar as bocas. ■ ■ ■

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