Centro Loyola de Fé

A bala de canhão: lições em tempos de pandemia e de crise socioambiental

Escrito Por Pe. Moisés Q. Ponte, SJ

Na ocasião do quinto centenário da conversão de Santo Inácio, fizemos memória em mais de uma ocasião daquele fatídico dia em que o jovem Íñigo de Loyola caiu por terra, ferido por uma bala de canhão, em Pamplona, no dia 21 de maio de 1521.

Se não conhecêssemos a história narrada pelo próprio Inácio, imaginaríamos que aquele tiro que lhe estraçalhou a perna não passasse de uma fatalidade comum a qualquer guerra. A verdade é que, assim como as guerras não são um mal necessário, também aquela bala de canhão poderia simplesmente não ter acontecido.

O próprio peregrino nos relata que, àquela altura da batalha, “todos eram do parecer de que eles se entregassem, com a condição de que não fossem mortos, pois viam claramente que não podiam se defender” (Autobiografia). Não se tratava de covardia, mas de bom senso! Há quem afirme que o exército francês contava com doze mil homens contra apenas mil do lado de Pamplona.

Mesmo diante de todas essas evidências, o jovem Íñigo permaneceu irredutível: “ele deu tantas razões ao governador da cidade, que o persuadiu à defesa, ainda que contra o parecer de todos os cavaleiros” (Autobiografia).

É o próprio Inácio a nos dizer que agiu contrariamente ao que para todos era evidente! Ele não é capaz de contemplar – como aprenderá mais tarde – os rostos vulneráveis de seus companheiros. Tampouco é capaz de escutar o que eles dizem nem de observar a desproporção que há entre o “que fazem as pessoas sobre a terra, como ferir e matar” (EE 108) e o que fazem “as pessoas divinas, a saber: ‘Façamos a redenção do gênero humano’” (EE 107).

Ensimesmado, o gentil-homem de Loyola perde toda e qualquer sensibilidade. Seus afetos e sentidos se entorpecem por devaneios cavalheirescos. Por seu orgulho, colocou em risco a vida de muitas pessoas, e quem sabe não foi responsável pela morte de outras. Por não ser capaz de contemplar e de sensibilizar-se, Íñigo passa da insensibilidade à insensatez.

Mas será a insensatez de Inácio muito diversa da que vivemos como humanidade? A cada dia se avolumam pesquisas e comprovações a nos indicar que não podemos mais seguir o atual modelo de sociedade e de exploração da natureza, caso não queiramos sucumbir junto com o nosso planeta. As evidências se acumulam diante de nossos olhos. Elas se traduzem em estatísticas sobre o aumento da miséria e da devastação de nossas florestas. Mas também têm rosto próprio: de indígenas que choram a perda de seus filhos e terra pela ação de garimpeiros e madeireiros; de famílias cujo pranto é soterrado junto com suas vidas e casas pelos dilúvios de um mundo em emergência climática.

Nos convenceremos de que esta pandemia e a atual crise socioambiental não são meras fatalidades? Enxergaremos as lições da atual crise sanitária como uma metáfora de nossa própria condição ambiental e humanitária: ou enfrentamos como uma só família a atual crise ou seguiremos ao encontro de uma bala de canhão que inevitavelmente nos dilacerará.

Não basta dizer que o que aconteceu marcará indelevelmente nossa história. Que haja uma linha divisória entre um antes e um depois não significa ainda conversão. Como para Inácio em seu tempo, o que também está em jogo para nós hoje é o que faremos de nossa vida depois dessa ruptura?

No caminho da conversão, reaprendamos a olhar e a escutar o mundo e as pessoas.

Exercitemos nosso sentir com Inácio

Coloque-se na presença do Senhor.

Contemple, desde o olhar das três pessoas divinas (EE 102), “a grande extensão e redondeza do mundo, no qual estão tantas e tão diversas gentes” (EE 103).

Veja “as pessoas, umas e outras. E, primeiro, as da face da terra, em tanta diversidade, em trajes como em gestos: uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uns sãos e outros enfermos…” (EE 106);

O que dizem? Tenho as escutado? E a mim mesmo? E às pessoas de meus círculos? Onde está o meu coração? (Mt 6,21).

Peça graça de ter o mesmo sentir de Cristo: “Tenham em vocês os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo” (Fl 2,5).

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