Centro Loyola de Fé

A autoficção e uma pedrinha no sapato

Eguimar Felício Chaveiro
[Doutor em Geografia Humana – Livre-docente da UFG/Universidade Federal de Goiás]

Uma amiga me relatou um caso, belo caso. Instigante caso. Certa vez ela foi convidada a ministrar uma palestra num evento de Literatura. O tema era quente e chamativo: a autoficção e a narrativa contemporânea. A chave de sua exposição era simples: a intercedência de blogs, sites, mensagens virtuais e redes, na sociabilidade contemporânea, havia constituído esse gênero narrativo novo. Ficcionalizar a própria vida era como colher mangas azuis no próprio quintal. No quintal das sociedades mundializadas. Desde que começou a preparação da palestra a sua cabeça zunia. Sob o resguardo do tema, perguntava em silêncio: “será que quando falamos de nós não é um-outro que fala?” Perguntava mais: “inventar histórias a partir de nossa própria experiência não é como inventar qualquer história?” O zunido da cabeça acedeu-se à psicanálise: “que personagem eu sou de mim mesma?” Estava motivada para exercer a fala. Além disso, abriria, com pompas e flores, o evento acadêmico. Sabia, por isso, que a sua palestra era a porta de acolhida ao que viria depois. Em decorrência dessa responsabilidade, a sua bolsa cerebral carregava Umberto Eco, Octávio Paz, Clarice Lispector, Roland Barthes, Lygia Fagundes Teles, Alfredo Bosi, Heloisa Buarque de Hollanda…

A sua bolsa cerebral estava recheada de rudimentos… Aliás, quase como uma obsessão lembrava de uma história de sua tia Quitita. Ocorreu de pesquisadores de uma renomada universidade do país descobrirem que tia Quitita havia inventado um bolo de pequi. Com pequenos nacos de gengibre e abençoado (é assim que tia Quitita dizia) com mel, o bolo de pequi, além do cheiro formidável, apresentava um gosto raro. E mais: se tornava um símbolo do episódio ambientalista que reinava – e reina – neste período histórico. Diante da obra (o bolo de tia Quitita), os pesquisadores trabalharam para que a iguaria cerradeira recebesse a patente legítima e justa. Aliás, tia Quitita teve que gastar um bom tempo respondendo questionários no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, onde iria patentear a sua obra gastronômica. Seu bolo constaria nas siglas do Estado. Tia Quitita foi assediada por TVs, jornais e mais gente das universidades. Recebeu troféus e, inclusive, um abraço do prefeito com pose oficial para o fotógrafo municipal. Alguém escreveu uma dissertação sobre o bolo de Quitita; uma escola estabeleceu um concurso para envergar um nome ao bolo, aliás, o premiado foi simples: bolo de Quitita. Houve um poeta que fez um poema lembrando que “a vida é um grande bolo”; um compositor escreveu uma música com timbres da viola caipira; as pessoas, inclusive, vizinhas, não lhe davam mais sossego. A vida de Quitita virou de cabeça para baixo, nunca mais teve sossego. A solução para uma possível paz foi radical: ela deixou de produzir o bolo. Enterrar o bolo era uma forma de consagrar que não queria fama, mas paz. Pois bem!

A minha amiga palestrante, depois de lembrar o caso do bolo de Quitita, caminhava solenemente para ministrar a palestra. Caminhava bem, até que um incômodo passou a lhe aporrinhar. Algo em seu pé esquerdo lhe machucava. De repente, percebeu que havia perdido a concentração: o seu cérebro deixava a autoficção no escanteio em nome do incômodo. Ciceroneada por dois doutores muito que famosos, não encontrava jeito de dizer que o seu pé esquerdo padecia de uma dor viril. Teve pudor em pedir aos nobres doutores um tempinho para ir ao banheiro. Ali poderia ver o que estava acontecendo com o pé. O auditório estava lotado.

De repente, se sentiu como uma noiva no momento crucial do discurso fatal: “sim, eu aceito casar…” A luz dos holofotes invadiu a sua alma. Entretanto, o incômodo se brutalizou. A minha amiga concentrava-se mais no incômodo gerado pela dor e mais no incômodo de não poder resolvê-la do que no assunto da palestra: a autoficção e a narrativa contemporânea. Situação que a levava a interrogar a sua esdrúxula condição: mais de um bilhão de pessoas passando fome no mundo; guerras maldosas e geopolíticas em vários lugares; disputas de países de economias ricas para pilharem minérios em África e na América Latina; crescimento vertiginoso das cracolândias nas metrópoles brasileiras; aumento da violência policial em várias unidades da federação; surpreendente monopólio de capitais pelas Big Techs, e ela com um problema daquela proporção: uma dor debaixo do pé no momento em que ministraria uma palestra. Depois de um nobre doutor ter lido, em tom enfático e pausado, o seu imenso curriculum, foi chamada para abrir o evento. Com um lenço vermelho sobre o pescoço e com uma jaqueta preta devidamente emplumada, pegou o microfone sob aplauso quase delirante da plateia. Manquitolando e sorrindo disfarçadamente, ao invés de falar da autoficção e a narrativa contemporânea, pediu desculpas antecipadas.

Ela mudaria ali o tema da palestra. Falaria da “autoficção
e a pedra no sapato”. Disse, de início, que nenhuma narrativa
escapa das metáforas. E que nenhuma metáfora escapa da realidade –
e que falar sobre si mesmo impõe falar do mundo. Por isso,
nunca se diz tudo de qualquer coisa e nunca o que se diz pode ser
desprezado, pois no dizer constam as ideologias de um tempo
e as suas disputas políticas. O que é ínfimo, sutil e minúsculo,
inclusive, invisível, pode agir nas formas de narrativas – e na vida.
Por conseguinte, o sujeito que fala, imerso em sua dor e em suas
faculdades, as mais diversas, não está só no seu dizer.
E nem sempre está consciente relativo ao que está falando.
Sumo: a autoficção não se separa das pedras no sapato.
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Depois de findada a conferência, abaixou-se tranquila e silenciosamente. Descalçou-se, retirando a pedrinha pontiaguda que lhe implicava no contexto. Pegou-a e guardou-a entre livros de Annie Ernaux, Carolina de Jesus e Sérgio S’antana. Enfim, emitiu um sorriso genuíno – e metafórico. Sentiu-se aliviada e satisfeita como se livrasse do peso do mundo, ou se comesse um bolo de tia Quitita. O original.

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